O que torna diferente a morte de George Floyd?

Por Corinna Lain

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O vídeo é difícil de assistir. Testemunhar a lenta asfixia de George Floyd, um homem negro, sendo assassinado por um policial branco, parece obsceno. E é mesmo; esse é o ponto.

O que há na morte de Floyd que a diferencia de todas as outras mortes por policiais? Certamente, aqueles que nasceram com os “privilégios de brancos” (white privileges) sabem que a brutalidade policial contra comunidade negra é cotidiana. Por que, então, o assassinato de Floyd foi o ponto de partida para protestos em todos os cinquenta Estados americanos?

A teoria social cognitiva oferece uma resposta: nossos mecanismos de desengajamento moral faliram. O desengajamento moral é apenas uma maneira refinada de explicar como conseguimos aceitar fatos que sabemos estar profunda e flagrantemente errados. Nós nos distanciamos da conduta ofensiva e diversos mecanismos psicossociais nos ajudam nisso:

  • Negação de responsabilidade. Eu não fiz isso, alguém fez.
  • Desumanização e atribuição de culpa. Ele mereceu. Esses indivíduos são bandidos.
  • Dessensibilização pela frequência dos atos transgressivos. Isso acontece o tempo todo.
  • Minimização de danos. Deve ter algo por detrás dessa história.
  • Abstração do mal. A brutalidade policial é ruim. O racismo é ruim. Agora posso voltar ao trabalho?

Esses e outros mecanismos de desengajamento moral protegem nossa delicada psique do pesado custo emocional de viver em dissonância cognitiva – quando nossos elevados ideais colidem com nosso baixo desempenho ao colocá-los em prática. Dizemos que nos importamos, mas estamos dispostos a tolerar o intolerável.

Até um vídeo capturar, para o mundo, o assassinato de George Floyd.

Vemos um homem que disse à polícia que não conseguia respirar – não uma ou duas, mas dezesseis vezes. No final, chorou por sua mãe. Como mães, pais, filhas e filhos, como não ficar de coração partido?

Vemos um policial com o joelho pressionado sobre o pescoço de Floyd – sua casual crueldade perfeitamente alinhada à mão no bolso. Ele quase parece entediado com a banalidade de toda a situação. Os espectadores dizem ao policial para verificar o pulso de Floyd. “Ele não está se mexendo”, alertam. Mas o oficial nada faz. E os três policiais ao lado tampouco o fazem. É só mais um dia de trabalho.

Isso é chocante, revoltante, injusto e também muito real. Não aguentamos olhar e agora também não podemos desviar o olhar. Tendo testemunhado a profunda injustiça com nossos próprios olhos, não podemos mais evitá-la. A realidade escancarada rompeu nossos mecanismos de desengajamento moral.

Se há um lampejo de esperança em tudo isso, é que as mudanças efetivamente reais que observarmos no passado também se seguiram a fenômenos como o que ora presenciamos.

O progresso dos direitos permaneceu estagnado na década que se seguiu à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que reconheceu a inconstitucionalidade da segregação escolar. Até que, em 1963, a polícia atacou manifestantes que protestavam pacificamente contra as práticas segregacionistas da cidade de Birmingham, Alabama. Imagens históricas de policiais brancos usando cães, cassetetes e jatos d’água, para brutalmente reprimir crianças negras em escolas, chocaram a nação e levaram à aprovação, no ano seguinte, da Lei dos Direitos Civis de 1964.

Na sequência, em 1965, tropas estaduais nos arredores de Selma, no Alabama, atacaram manifestantes em defesa dos direitos de voto, agredindo-os com gás lacrimogêneo, cassetetes e mangueiras de borracha cobertas com arame farpado. As emissoras de TV transmitiram a carnificina ao vivo, a qual  horrorizou o país e culminou na aprovação, meses depois, da Lei de Direitos de Voto de 1965.

O Rev. Martin Luther King Jr. afirmou, numa declaração histórica, que o arco do universo moral se inclina (ou se curva) em direção à justiça, e a história demostrou que os eventos que nos forçam a enfrentar a injustiça, despojando-nos dos mecanismos de autoengano, fazem essas palavras soarem verdadeiras.

Afirmar, entretanto, que essas palavras soam verdadeiras não significa que sua verdade seja inevitável. Os últimos cinquenta anos também evidenciaram que inclinar o arco do universo moral pode ser tão difícil quanto tentar curvar aço com as próprias mãos. Vamos sentir a dor, a frustração e a raiva de uma comunidade negra forçada a protestar contra a mesma injustiça estatal contra a qual seus avós protestaram. Onde está o arco do universo moral nisso?

A indignação hoje pode significar progresso amanhã, mas se o passado realmente for um prólogo, isso apenas acontecerá quando o poder do privilégio de brancos for exercido para servir à causa da justiça racial. Não basta apoiar mudanças. Nós que nascemos com white privileges devemos insistir na mudança racial; precisamos nos unir inequivocamente à comunidade negra para exigi-la, e nossas demandas devem ser tão claras nas urnas eleitorais quanto nas ruas. Essa foi a história dos anos 1960. Essa também pode ser a história da nossa geração.

O desengajamento moral é uma decorrência dos white privileges – temos o privilégio de nos desassociar da realidade do racismo que os membros negros da nossa comunidade experimentam todos os dias. No passado, usamos os white privileges para ignorar essa realidade. Com os pedidos desesperados de George Floyd ecoando em nossos ouvidos, é hora de usarmos os white privileges para ajudar a transformar essa realidade.


Corinna Barrett Lain
S. D. Roberts & Sandra Moore Professor of Law na Faculdade de Direito da University of Richmond


Tradução do artigo intitulado What made George Floyd’s death different?, publicado originalmente no Richmond Times-Dispatch. Tradução e divulgação autorizadas pela autora. Tradução de Jean Pontes.

This column originally appeared in the Richmond Times-Dispatch. Nossos agradecimentos a Corinna Lain e ao Richmond Times-Dispatch pelo apoio e gentileza. The Interfases Blog Editors wish to thank Corinna Lain and The Richmond Times-Dispatch for their support and kindness.


Imagem de destaque: F. Muhammad por Pixabay