Desafiando precedentes: os padrões erráticos da jurisprudência brasileira

Por Igor De Lazari e Sérgio Dias

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Houve no Brasil, a partir da promulgação do [novo] Código de Processo Civil (CPC), introdução de novos mecanismos no ordenamento jurídico brasileiro para assegurar a integridade das decisões e qualificar o sistema de precedentes no Brasil.

Ilustra a nova ‘onda renovatória’ dos precedentes do Código o art. 489, §1º, VI, do CPC, que dispõe que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que, inter alia, deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

Para Daniel Neves (Manual de Direito Processual Civil, p. 1390), precedente é “qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido”, desde que “transcend[a] o caso concreto” e que não “se limit[e] a aplicar a letra da lei”.

Embora, porém, o art. 489, se refira genericamente a “precedente”, a doutrina propõe uma “redução teleológica” do artigo, afirmando que “os precedentes a que se referem os incisos V e VI do § 1º do art. 489 do CPC/2015 são apenas os mencionados no art. 927 e no inciso IV do art. 332” (Enunciado 11/ENFAM). Neste sentido, Daniel Neves afirma que “o inciso VI do § 1° do art. 489 do Novo CPC não se aplica a súmulas e precedentes meramente persuasivos”, porque nesse caso o juiz pode simplesmente deixar de aplicá-los por discordar de seu conteúdo, não cabendo exigir-se qualquer distinção ou superação que justifique sua decisão”.

Essa interpretação, nada obstante defensiva, reduz racionalmente o ônus argumentativo das decisões, que, levado ao máximo, inviabilizaria a própria atividade jurisdicional. Isso porque inúmeras decisões são proferidas, diariamente, pelos milhares de juízes brasileiros, de modo que seria impraticável requerer que o processo decisório passasse por uma pan-consideração de quaisquer julgamentos e decisões relacionadas. Neste sentido, ainda, artigo de Daniel Penteado.

Por outro lado, restringir o dispositivo pode desvirtuar a mens legis do artigo. Em julgado recente, porém, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, alinhado à interpretação doutrinária e reafirmando orientação anterior (REsp 1.698.774/RS), que a “indicação de julgado simples e isolado não ostenta a natureza jurídica de ‘súmula, jurisprudência ou precedente’ para fins de aplicação do art. 489, § 1º, VI, do CPC”. 

Disse ainda que “a interpretação sistemática do CPC, notadamente a leitura do art. 927, que dialoga diretamente com o art. 489, evidencia que “precedente” abarca somente os casos julgados na forma qualificada pelo primeiro comando normativo citado, não tendo o termo abarcado de maneira generalizada qualquer decisão judicial”. Portanto, “a indicação de julgado simples e isolado não ostenta a natureza jurídica de “súmula, jurisprudência ou precedente” para fins de aplicação do art. 489, §1º, VI, do CPC”. STJ. 1ª Turma. AREsp 1267283-MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 27/09/2022 (Info 760).

Problema é que, na situação ilustrada, o Tribunal de origem deixou de aplicar decisão anterior relativa a uma situação jurídica idêntica, dissentindo de sua própria decisão anterior e nada dizendo a respeito da mudança de rumos interpretativos. Inconveniente semelhante pode ocorrer na hipótese na qual um juiz ou qualquer outro órgão julgador divirja de orientação sua de maneira pontual/circunstancial sem justificativa argumentativa para a divergência.

De que maneira, portanto, justificar a inaplicabilidade do art. 489, §1º, VI, do CPC, nas hipóteses indicadas, e de que maneira assegurar, nessas situações, a manutenção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente?

Parece mais adequado reputar, portanto, que há na situação indicada uma omissão decisória baseada no art. 489, §1º, IV, do CPC, que afirma ser deficitariamente fundamentada a decisão judicial que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.

Nas situações de dissidência interna, nas quais o próprio órgão judicante ignora sua decisão anterior, nada dizendo sobre isso, a omissão independe da definição de “precedente vinculante”, mas de uma noção básica de dever de integridade e de isonomia judiciais. Para Lenio Streck, afinal, “o respeito à coerência e integridade [é um dos] princípios que constituem o “minimum aplicandi” na decisão judicial”, e isso independe do alcance que se pretenda atribuir à ideia de precedentes. Isso porque “a coerência impõe o dever de autorreferência” (Fredie Didier Jr.), o dever de dialogar com os precedentes anteriores, de assegurar a cadeia dworkiniana do romance.


Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)

Sergio Dias
Doutorando em Direito (UFRJ) e Juiz Federal da Justiça Federal da 2ª Região


Imagem de destaque: STJ

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