Introdução
A arte é expressão humana emotiva por excelência, capaz de produzir reflexão e apta a apresentar os homens na inteireza de sua realidade. De alguma forma, o Direito, como ciência das humanidades, dialoga com a carga emocional da produção artística porque, de um lado, baseia-se na apreciação das relações entre as pessoas e, de outro, projeta o agir ideal referenciado como o dever-ser.
As manifestações artísticas estão repletas de exemplos em pinturas, em esculturas, na música e em outras produções estéticas nos quais a obra desperta os sentimentos de misericórdia e de compaixão diante do sofrimento e da miséria humana.
Não se tem como ficar insensível à expressão de dor silenciosa de Maria com corpo morto de seu filho Jesus no colo na escultura Pietá de Michelângelo, ou à crueza da destruição da vida na Guerra Civil Espanhola na pintura Guernica de Pablo Picasso, ou ao vazio dilacerante da saudade na música Pedaço de Mim, de Chico Buarque.
A arte, sendo capaz de despertar nas pessoas a emoção pela dor do outro, contribui para o desenvolvimento dos valores morais da caridade e de fraternidade, precursores da solidariedade. Há, pois, intrínseca relação de causa e efeito entre a sensibilidade diante da miséria humana, para cujo despertar as artes contribuem, e o desenvolvimento de ações concretas que procurem diminuir o sofrimento alheio.
A atitude positiva de estender a mão àquele que se encontra em situação de dificuldade pode ser individual ou coletiva, voluntária ou gerenciada pelo Estado. O agir em prol de alguém que precise de ajuda pode, tanto decorrer de uma decisão individual impregnada de virtude (no sentido da Filosofia Clássica), quanto de uma atitude coletiva de organização comunitária que se dispõe a não permitir situações de desequilíbrio nas relações sociais advindo do sofrimento. Nesses dois casos, a ação é voluntária, seja individual ou coletiva.
Para além dessas hipóteses, o próprio Estado pode se utilizar de seu poder para incentivar particulares a ajudar o outro, ou ele mesmo adotar medidas de solidariedade como ato compulsório de distribuição de ajuda dos mais abastados em favor dos mais necessitados da sociedade.
A normatização do valor moral da solidariedade como princípio do Direito refere-se a essas duas experiências sociais gerenciadas pelo Estado, que pode apenas regular e facilitar a ação privada de caridade, ou capitanear atos de solidariedade diretamente através de órgãos da Administração. No primeiro caso, como exemplo, podem ser concedidas vantagens fiscais para doações a instituições de caridade; no segundo caso, desenvolve-se um sistema público de proteção social através de medidas de distribuição de renda a pessoas carentes.
O presente estudo destaca o papel da arte como elemento despertador de sentimentos virtuosos ligados à fraternidade diante da miséria humana. A partir do olhar caridoso para o sofrimento, a compaixão vivenciada pelo público é capaz de influenciar ações em prol da redução da desigualdade. O Direito, a reboque, sofre a influência da sensibilidade social, do que resulta a aplicação do princípio da solidariedade, na Assistência e na Previdência Social, sob o vetor da dignidade humana.
Nossa abordagem inicia pela pena de Victor Hugo, ao retratar, com maestria, a bondade do Bispo de Digne, na França do século XIX, o Monsenhor Charles-François-Bienvenu Myriel, um dos personagens de sua obra prima, o livro “Os Miseráveis”.
Compaixão e a caridade – o despertar da fraternidade como valor moral
Há uma cena marcante no livro “Os Miseráveis” na qual o protagonista, Jean Valjean, ingressa na casa do Bispo Myriel e é acolhido para o jantar de uma forma que o surpreende e que é capaz de modificá-lo para sempre.
Jean Valjean é retratado no livro como um dos milhares de franceses miseráveis no conturbado início do século XIX, a quem se negou qualquer chance de vida digna desde a infância. Órfão ainda pequeno, foi criado na pobreza pela irmã viúva que possuía sete filhos, tendo que aceitar qualquer trabalho para ajudar a sustentar a família. Em um rigoroso inverno em que não conseguiu trabalho e viu os sobrinhos à beira da morte pela fome, furtou pão em uma padaria. Pego em flagrante e levado aos tribunais, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados nas galés. Após quatro anos de prisão, fugiu sem uso de violência e foi condenado a mais três anos de prisão, aos quais se somaram mais três punições por novas fugas, deixando-o em reclusão por dezenove anos.
Ao ser livre, foi-lhe entregue um passaporte amarelo (a ser apresentado obrigatoriamente à autoridade policial de qualquer cidade onde estivesse) no qual se lia: homem muito perigoso. Como destacou Victor Hugo sobre o estado de espírito do protagonista:
De ano em ano, essa alma fora se abrutalhando mais e mais, lenta, mas fatalmente. E coração ressequido quer dizer olhos sem lágrimas. Quando saiu das galés, há dezenove anos que não derramava uma lágrima.
Após caminhar quatro dias a pé, Jean Valjean tentou jantar e dormir em uma hospedaria, da qual foi expulso quando souberam quem era. Desesperado, bateu à porta da casa do Bispo Myriel. A porta não possuía tranca.
Ao entrar, praticamente em transe, apresentou-se sem omitir sua situação de renegado e pessoa perigosa, certo de que teria mais um exemplo de rejeição a somar-se ao ódio que sentia pela sociedade.
Para sua surpresa, entretanto, sem fazer qualquer apreciação sobre a condição social do ex-presidiário e sem sequer lhe perguntar o nome, o religioso solicitou que fosse colocado mais um lugar à mesa da sala na qual jantava, com os mesmos pratos e talheres em que comia. Após a refeição, ofereceu a Jean um quarto para dormir. Não é possível ler essa passagem do livro sem ficar impactado ao imaginar a cena, pela lição de misericórdia e de caridade do Bispo de Digne, que diz:
– Não era preciso que o senhor me dissesse quem era. Essa não é a minha casa; é a casa de Jesus Cristo. O senhor está neste casa; tem fome e sede. Seja, pois, bem-vindo. Portanto, não me agradeça nem diga que o recebi na minha casa. Ninguém aqui está em sua própria casa, com exceção de quem necessita de abrigo.
A surpreendente experiência de bondade pela qual passa um desiludido Jean Valjean modifica sua vida por completo e é capaz de fazê-lo renascer interiormente para encontrar o que havia de melhor em si. Ele é transformado em uma pessoa diferente, capaz de salvar, a partir daquele momento, a órfã Cosette do abandono e dos maus-tratos de uma família exploradora. Ao se tornar um empresário de sucesso, dá assistência aos mais pobres da comunidade, o que o leva a ser escolhido como prefeito (maire) da cidade de Montreuil-sur-Mer.
A mudança na vida de Jean Valjean é um processo no qual ele ainda tem, antes, uma recaída, ao furtar talheres da casa do Bispo. Detido pela polícia, que o encontrou com os objetos, recebe mais uma lição de vida do Monsenhor Bienvenu que, ao compreender rapidamente a situação a que foi chamado a testemunhar, diz aos policiais que as peças foram um presente dado a Jean Valjean, repreendendo-o em seguida por ter-se esquecido de também levar os castiçais!
Apalermado com a situação, Valjean ouve do Bispo:
– Agora vá em paz. Não se esqueça jamais que o senhor prometeu usar esse dinheiro para tornar-se um homem de bem. Jean Valjean, meu irmão, o senhor não pertence mais ao mal, mas ao bem. Resgatei a sua alma; liberto-a dos pensamentos sinistros e do espírito da perdição, e entrego-a a Deus.
“Os Miseráveis” é uma obra ímpar, com personagens de personalidade complexa, que vivem situações-limite. No romance, Victor Hugo retrata uma sociedade desigual na qual a miséria expõe as pessoas a um sistema penal e policial injusto e arbitrário (Jean Valjean é perseguido, implacavelmente, durante toda a vida adulta, pelo inspetor Javert, do início ao fim do livro). É uma sociedade de moer gente. Por outro lado, também emociona pela beleza de atos heroicos de revolucionários apaixonados por suas causas de Justiça e por ações de amor fraterno em relação às quais o leitor não consegue ficar indiferente.
Esse é um livro sobre o que há de pior e de melhor nos indivíduos e que dá destaque ao homem como ser social. Especialmente bela é a apresentação do Bispo Muriel, a quem cabe o papel de levar ao texto a chamada regra de ouro das relações humanas: faz aos outros o que quer te façam[1], a semente de um comportamento ético que inspira o desenvolvimento do princípio da solidariedade. O Bispo de Digne é retratado como homem de virtude: prudente, justo, forte em suas convicções e sóbrio.
Victor Hugo foi muito feliz ao construir os traços de personalidade do Bispo Myriel, cujos atos são capazes de recuperar interiormente um homem até então perdido e massacrado pela sociedade, transformando seu ódio em amor pelo próximo até o final do livro. O leitor não consegue ficar insensível a esta mensagem sobre a fraternidade, parâmetro moral que vai inspirar o princípio jurídico da solidariedade.
Da Moral ao Direito – a solidariedade como princípio
Os valores morais da liberdade, da igualdade e da solidariedade embasam o princípio da dignidade da pessoa humana e legitimam ordens constitucionais e os direitos fundamentais. Alguns teóricos liberais (e.g. Francis Depérée), afirmam que os direitos humanos são direitos da liberdade, basicamente reduzindo a este valor a própria dignidade da pessoa. Mesmo sem concordar com a exclusividade da liberdade como valor informador dos direitos, há de ser reconhecida a íntima relação entre ela e a dignidade como pressuposto para a autonomia dos indivíduos.
Deve-se apenas observar que é sob o viés da liberdade social, do homem em comunidade, que se pode justificar a limitação do espaço de autonomia necessária ao convívio pacífico entre as pessoas. De acordo com esse pensamento, é correto admitir a contenção da liberdade individual por regras gerais dotadas de razoabilidade, que sirvam de benefício para a liberdade de todos.
A igualdade também é um valor caro às teorias de legitimação dos direitos fundamentais. Nas Constituições de modelo social, a isonomia assume contornos de igualdade de chances ou oportunidades, em que um dos objetivos da organização estatal é o de proporcionar condições materiais mínimas de acesso aos meios necessários para que as pessoas possam exercer sua autonomia. A igualdade vinculada à dignidade da pessoa não exige do Estado distribuição de bens de forma a tornar todos iguais, mas sim que este assegure condições mínimas que afastem as pessoas de uma existência degradante. A igualdade de oportunidades pressupõe, como valor, não a igualdade simétrica, mas a inexistência da desigualdade aviltante.
Ao lado desses dois valores – liberdade e igualdade – a solidariedade passa a merecer destaque no século XX, como fundamento dos direitos metaindividuais e dos direitos sociais prestacionais, nos quais se incluem os direitos assistenciais e previdenciários.
O princípio da solidariedade como um dos fundamentos da proteção assistencial e previdenciária
A solidariedade, como valor moral, pode ser classificada em dois tipos: a comutativa e a distributiva.
Na concepção de solidariedade comutativa, destaca-se o favorecimento ao sentimento de pertencimento da pessoa a um grupo determinado de iguais, bem como a avaliação de que se deve proteger o outro para que haja proteção de si mesmo em caso de necessidade. A análise feita pelo indivíduo na solidariedade comutativa é a de que não se deve desproteger, para não ser desprotegido. O critério de justiça apoia-se, portanto, na possibilidade de troca. Para que o sujeito possa se considerar detentor de direitos, é necessário que compreenda que os demais sujeitos da coletividade também o são.
A valorização coletiva decorrente da solidariedade comutativa permite ao sujeito reconhecer o próximo da mesma forma como vê a si mesmo, ou seja, também como sendo digno de consideração, alcançando-se, assim, a estima social. A referida valorização atinge não só os indivíduos, mas também os grupamentos de sujeitos, que passam a demonstrar orgulho por suas características próprias, que são o espelho dos valores de seus integrantes individuais ou dos grupos.
Na solidariedade comutativa, portanto, os indivíduos se propõem a partilhar valores e objetivos comuns. Assim, há uma relação de simetria, seja dentro do grupo, seja intergrupos.[2]
Por outro lado, a solidariedade distributiva não está baseada em sentimento de pertencimento a um grupo ou no critério de troca de proteção, mas sim no de entrega ao outro de meios suficientes para garantir sua dignidade. Seu fundamento moral está vinculado na proteção do outro pelo que ele é, digno de atenção e respeito, e tem por objetivo a redução de desigualdade entre as pessoas.
A solidariedade distributiva, vinculada a direitos fundamentais, distingue-se da caridade por ser esta uma ação facultativa, muitas vezes movida com base religiosa, enquanto aquela envolve ação gerenciada. Além disso, enquanto a solidariedade comutativa pressupõe a igualdade pelo menos relativa, a solidariedade distributiva parte de uma realidade fática diversa, a da existência de uma desigualdade em nível que justifique a atuação em favor dos menos favorecidos, independentemente da possibilidade de invocação de reciprocidade.
A solidariedade distributiva encerra a regra de proteger sem esperar semelhante tratamento por direito. A Constituição de 1988 faz alusão à solidariedade distributiva ao elevá-la a fundamento da República, ao lado da busca pela redução de desigualdade social (art. 3º, I e III). Da mesma forma, é essa modalidade de solidariedade que se encontra vinculada à dignidade da pessoa humana e aos valores da liberdade real e da igualdade de chances referidos no início do texto.
A face da solidariedade apresentada pela relação do Bispo de Digne com Jean Valjean é a distributiva. Como será visto adiante, a solidariedade distributiva é a marca da Assistência Social. Na Previdência, aplicam-se atualmente os dois tipos de solidariedade, sendo a comutativa prioritária em relação à distributiva.
A aplicação do princípio da solidariedade na Assistência e na Previdência Social brasileira
Como a cobertura de direitos ligados à assistência social está fundada mais estreitamente nos princípios de uniformidade e de necessidade, além de não haver relação direta comutativa entre participantes, como ocorre na Previdência, incide de forma direta a solidariedade na versão distributiva, o que permite que a sociedade seja chamada a dar sustentação ao sistema através de obrigações tributárias indiretas.
Na Previdência, a situação é mais complexa. O Regime Geral de Previdência Social brasileiro (RGPS), apesar de bastante influenciado a partir de década de 1960 pelo Relatório Beveridge, ainda mantém as características estruturais da concepção de Bismark. O sistema não é universal (apesar do enunciado do princípio no art. 194, da Constituição). Em que pese permitir a filiação do segurado facultativo, seu objetivo é a proteção de trabalhadores e o custeio principal é feito por quotização de contribuições sociais específicas.
Tratando-se de um regime que funciona em modelo econômico de repartição simples,[3] há naturalmente aplicação do princípio da solidariedade, que se apresenta sob a dupla visão, da comutatividade e da distributividade. O regime previdenciário brasileiro observa, em primeiro plano, a solidariedade comutativa entre os participantes do plano de seguro, tendo em vista a obrigação de proteção recíproca inerente ao modelo. Trabalhadores do momento mantêm o pagamento dos benefícios atuais dos inativos, na expectativa de que sejam protegidos da mesma forma no futuro, naquilo que se denomina de “pacto entre gerações”.
Destacando o papel da comutatividade, observa-se que o cálculo dos benefícios considera a média aritmética dos valores sobre os quais incidiu contribuição, garantindo ao trabalhador proventos que guardam relação com o montante de arrecadação durante o período de atividade, com algumas atenuações (sobre modelos previdências, cf. Direito da Segurança Social: Princípios Fundamentais numa análise prospectiva & Droit de la Sécurité Sociale). O padrão de financiamento coletivizado do RGPS é de quotização dos participantes, com temperamentos.
Ocorre que, em determinadas situações, alguns trabalhadores e seus dependentes podem ter acesso a benefícios sem que tenha havido contribuição mínima para o sistema. Como as contribuições exclusivamente previdenciárias (art. 195, I, “a” e II, da CRFB/88) não são suficientes para arcar com as despesas, cabe à sociedade a manutenção dessas prestações, a fim de que se impeça que um trabalhador inativo ou sua família caiam em situação de miséria. Nesse caso, de forma subsidiária, será aplicada a solidariedade sob a ótica da distributividade.
O art. 195, da Constituição, que prevê que a seguridade social seja financiada por toda sociedade, de forma direta e indireta, deve ser adequadamente interpretado. A sociedade financia a previdência social de forma direta através das contribuições sociais dos trabalhadores, que se cotizam, em sistema de solidariedade comutativa, para a proteção dos inativos e pensionistas.
Não sendo suficientes as contribuições específicas, e para que não falte renda ao trabalhador e sua família em situação de risco, aplica-se subsidiariamente o princípio da solidariedade na versão distributiva, pois serão utilizados ingressos públicos da responsabilidade daqueles que não participam do sistema. Essa é a forma indireta de financiamento da seguridade pela sociedade.
Uma das vantagens do temperamento no modelo de Bismark pelo Relatório Beveridge foi potencializar a aplicação do princípio da solidariedade distributiva, repartindo-se pela sociedade o ônus de arcar com a subsistência daqueles que estejam impossibilitados de trabalhar e não teriam como ser sustentados apenas pela comutatividade do sistema.
De fato, no Brasil, até a década de 1960, a não universalização dos segurados e dos benefícios, e seu financiamento mutualista, revelavam que a repartição do risco era permeada por um caráter de proteção de grupo. Com a introdução do princípio da solidariedade distributiva no sistema, houve um salto qualitativo no seguro social brasileiro, fazendo com que toda a sociedade viesse a participar dela, garantindo o pagamento de prestações mesmo sem sustentação financeira suficiente pela arrecadação das quotas do grupo.
A Constituição de 1988 consolidou o movimento, ao evidenciar a preocupação com a erradicação da miséria e ao explicitar o objetivo de redução da desigualdade social. Com ela, a aplicação da solidariedade distributiva passou a proteger de forma mais abrangente os trabalhadores contra os riscos sociais, e não apenas a prever o pagamento de indenização parcial, que recompusesse a perda da capacidade de trabalho do segurado.
Com isso, o princípio da solidariedade foi elevado a um novo patamar no Direito Previdenciário, com o aperfeiçoamento do seguro social para um modelo de segurança social, a exigir atuação efetiva do Estado na proteção de seus cidadãos. Observando-se a solidariedade do ponto de vista da justiça distributiva, os que possuem melhores condições são chamados a atuar em favor dos que não teriam condições suficientes de subsistência, mediante o gerenciamento do Estado, de forma subsidiária. Todos os segurados podem receber pelo menos benefícios em valor não inferior ao do salário mínimo.
As mudanças implementadas no Regime Geral a partir dos anos 1960 e principalmente com o advento da Constituição de 1988 contribuíram para o adensamento da proteção e a diminuição da desigualdade social.
O problema da solidariedade invertida na Previdência Social
A aplicação do princípio da solidariedade na versão distributiva deve ser feita com parcimônia na Previdência Social, sob pena de se favorecer a solidariedade social invertida, na qual a sociedade, em especial seus integrantes mais desfavorecidos, são exigidos injustamente na carga tributária para garantir vantagens para parcela da população de maior renda.
A situação é especialmente grave nos sistemas de previdência em que: (i) não exista patamar máximo de renda de cobertura, ou nos quais este patamar seja muito elevado, e (ii) sejam criados para a proteção de grupos específicos. No que se refere ao primeiro aspecto, a oneração indireta da sociedade para atender à cobertura de direitos sociais prestacionais somente deve ocorrer para a garantia de proteção mínima às pessoas, em cumprimento ao objetivo republicano de redução das desigualdades sociais.
Se um sistema previdenciário mantém o pagamento de benefícios em altos valores, não se justifica a chamada social subsidiária visando a solidariedade distributiva. De outra forma, a solidariedade não será garantia de justiça, mas de injustiça social.
Quanto ao segundo ponto, a solidariedade distributiva aplicada aos sistemas de previdência tem relação com o grau de universalização da proteção. Quanto mais abrangente for o grupo de segurados, maior justificativa social terá atuação subsidiária da sociedade. Impor ônus financeiro a todo o corpo social, em particular os mais pobres, para dar vantagens previdenciárias a grupos específicos, pode indicar a criação e manutenção de privilégios sociais.
Pode-se afirmar então que a solidariedade distributiva deve ser aplicada de forma subsidiária na Previdência Social, e mesmo assim com menor influência em sistemas de previdência direcionados e grupos específicos e que paguem benefícios de valor elevado. O aspecto distributivo da solidariedade terá maior incidência nos regimes dotados de universalidade de cobertura e que mantenham o pagamento de benefícios em valores mais baixos.
A utilização desmedida da solidariedade distributiva em sistemas previdenciários que protejam grupos específicos com cobertura de benefícios em elevados montantes não se justifica por critério de justiça, pois ensejaria a oneração indevida da sociedade.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 3.105, em que foi discutida a constitucionalidade de imposição de contribuição dos servidores inativos e pensionistas, teve sensibilidade quanto à questão, ao destacar que a constitucionalidade da imposição tributária baseava-se também no princípio da solidariedade do sistema previdenciário dos Regimes Próprios.
Para o STF, como o sistema previdenciário dos servidores protege grupo específico e paga benefícios em valores mais elevados, deveria prevalecer a aplicação da solidariedade comutativa, e não a distributiva, exigindo-se que os beneficiários do sistema, incluindo os inativos e pensionistas, fossem os primeiros a serem chamados a socorrê-lo na insuficiência financeira.
Se o sistema previdenciário dos servidores não arrecada suficientemente para cobrir suas obrigações, primeiro deve-se exigir incremento de contribuição dos participantes, antes de se onerar a sociedade em sua carga tributária genérica.
Exigir que a sociedade subsidie o sistema antes de equilibrá-lo internamente implica agravar a situação das pessoas mais pobres em favor daqueles com maior renda. Neste caso, a solução de justiça exige a aplicação da solidariedade comutativa no grupo, que deve buscar a composição financeira e o equilíbrio do sistema, primeiro entre os participantes, os maiores interessados na manutenção da capacidade econômica do regime.
Não fosse assim, a consequência de afastar a imposição tributária dos inativos do serviço público seria fazer incidir a solidariedade invertida. A solução a ser dada pelo Supremo Tribunal Federal talvez fosse outra se a insuficiência financeira ocorresse no Regime Geral. Como a abrangência de proteção desse sistema é maior e a cobertura dos benefícios é limitada a um valor máximo, a Corte poderia fazer incidir o princípio da solidariedade distributiva, do que decorreria o reconhecimento de imunidade dos aposentados em pagar contribuição (art. 195, II), chamando-se a sociedade a subsidiá-lo.
Juridicamente, o princípio da solidariedade, aplicado à Previdência Social, possui duplo fundamento constitucional, um sob viés da comutatividade e outro na acepção da distributividade. No que se refere à solidariedade comutativa, incide o dispositivo do art. 40, da Constituição, aliado ao do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, que convoca os próprios membros do grupo protegido a arcar com a sustentabilidade do sistema.
Como visto antes, a comutatividade deve prevalecer em regimes de seguro de grupos específicos que mantenham prestações de elevado valor. A solidariedade distributiva vincula-se aos objetivos constitucionais de garantir uma sociedade solidária e de redução da desigualdade (art. 3º, I e III, da CRFB/88) e possibilita a oneração da sociedade com gasto de proteção previdenciária a fim de proteger grupo mais abrangente para pagamento de benefícios de baixo valor.
Portanto, em relação à Previdência, a influência da solidariedade distributiva no Regime Geral é muito mais marcante do que nos Regimes Próprios dos servidores públicos exatamente, exatamente porque os benefícios são oferecidos a um número de segurados bastante representativo na população brasileira (princípio da universalidade) e o valor das aposentadorias e pensões submete-se a um limite máximo inferior ao da remuneração do funcionalismo (princípios da uniformidade e da necessidade).
Da mesma forma, o raciocínio de aplicação da solidariedade comutativa e da solidariedade distributiva pode ser estendido a outros direitos sociais prestacionais. A compreensão da potencialidade do princípio da solidariedade é, pois, fundamental para a solução de diversas questões jurídicas que envolvam a Previdência Social e também outros direitos sociais a prestações, propiciando um caminho hermenêutico garantidor de maior justiça social na aplicação de dispositivos vinculados aos direitos fundamentais.
Conclusão
O presente estudo destaca o papel da arte como elemento despertador de sentimentos virtuosos ligados à fraternidade. A partir do olhar para o sofrimento humano, a compaixão vivenciada pelas pessoas em sociedade é capaz de influenciar ações, relacionadas ao princípio da solidariedade, que procuram minimizar o sofrimento e a miséria.
Na obra prima “Os Miseráveis”, a ação de uma personagem, o Bispo de Digne, Bienvenu Myriel, ao acolher com caridade o ex-presidiário Jean Valjean, concretiza a chamada regra de ouro das relações humanas: “faz aos outros o que quer te façam”. Victor Hugo não permite que seu leitor fique insensível ao comportamento ético que inspira o desenvolvimento do princípio da solidariedade como valor moral.
Como princípio jurídico, existem dois aspectos da solidariedade que respaldam os modelos de proteção social aplicados no Brasil: o da solidariedade comutativa e o da solidariedade distributiva. A concepção de solidariedade vinculada à justiça comutativa baseia-se na ideia de igualdade e na avaliação de pertencimento a grupo, o que gera a proteção recíproca. Nela, os indivíduos se propõem a partilhar valores em determinada comunidade, orientada por objetivos comuns, em relação de simetria.
A solidariedade distributiva, por outro lado, não implica pertencimento a grupo e tem por objetivo a redução de desigualdade entre as pessoas. Enquanto a solidariedade comutativa pressupõe a igualdade pelo menos relativa, a solidariedade distributiva parte de uma realidade fática diversa, a da existência de uma desigualdade em nível que justifique a atuação em favor dos menos favorecidos.
Na assistência social, aplica-se a solidariedade sob o viés distributivo.
Na previdência social pública brasileira, incidem os dois tipos de solidariedade. Em primeiro plano, há solidariedade comutativa entre os participantes do seguro, tendo em vista a obrigação de proteção recíproca inerente ao modelo. Subsidiariamente, aplica-se a solidariedade distributiva.
A solidariedade distributiva deve atuar primordialmente em sistemas de previdência com característica mais universal e para a proteção de benefícios mínimos, não se justificando em princípio, por critérios de justiça, sua utilização em favor da proteção de grupos muito específicos e que mantenham pagamento de benefícios em valores elevados de renda.
De outra forma, ocorreria a solidariedade invertida, em que a parcela mais pobre da população é chamada a contribuir para a manutenção de vantagens de um grupo com melhores condições financeiras.
Portanto, quanto mais abrangente for a proteção previdenciária e mais limitado for o valor dos benefícios, mais apto estará o sistema de seguro para a aplicação da solidariedade distributiva. No fim, a vida do Direito imita a arte. No percurso da obra de Victor Hugo, destaca-se, dentre tantos sentimentos, o da caridade. Nele está a semente do valor moral da fraternidade, que recebe previsão normativa, no mundo do dever-ser, no princípio da solidariedade, voltado à Justiça Social e à proteção da digne(idade) da pessoa humana, tal como apresentado pelo Bispo de Digne, Monsenhor Bienvenu (Bem-vindo) Myriel, em “Os Miseráveis”.
[1] O autor reconhece o poder da ética cristã da caridade ao colocar um Bispo como a personagem que veicula o cerne da mensagem de Cristo, no que ele denomina de segundo mandamento, de amar o próximo. Em Mateus, 2, 37-40, Jesus, provocado pelos fariseus a dizer qual é o maior mandamento, respondeu: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas”. (grifei)
[2] O filósofo Isaiah BERLIN, comentando a liberdade como direito de abstenção do Estado e de terceiros, denominou-a de “liberdade de” ou negativa; para diferenciá-la da definição de “liberdade para”, que consiste na capacidade de exercício da liberdade, também chamada de liberdade positiva, que pressupõe a presença de condições para o exercício da autonomia de vontade. A “liberdade para” é uma liberdade de participação e atuação do indivíduo, principalmente nas decisões políticas da sociedade. Mas também se pode fazer uma leitura dessa modalidade de liberdade vinculando-a à necessidade da presença de meios materiais, físicos, para o exercício da liberdade. Nessa compreensão, o Estado deve prover mecanismos contra a pobreza, através de prestações sociais mínimas, para permitir que as pessoas possam exercer a autonomia privada – a miséria, a doença e a ignorância aprisionam o homem a uma existência indigna e retiram dele a possibilidade de ser livre.
[3] Referindo-se a esta modalidade de solidariedade, afirma Maria Celina BODIN DE MORAES: “Subjacente à ideia de reciprocidade está a da comunidade de iguais que, porém, sob o império da igualdade formal, é de ser entendida, tanto fática como juridicamente, em sentido determinado: faticamente, ressaltando que as desigualdades nunca são tão relevantes assim; em sentido jurídico, menosprezando as desigualdades de fato para que os homens possam considerar-se (embora não o sejam realmente) como iguais. Comunidade de iguais e igualdade de interesses, contudo, ainda referenciados a valores exclusivamente individuais, caros a indivíduos em reais condições de igualdade e enquanto encerrados em sua individualidade. A única regra de justiça (comutativa), neste ambiente, permanece sendo a da igualdade perante a lei.”

Marcelo Leonardo Tavares
Professor Associado da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Público pela UERJ/Paris II. Juiz Federal
Imagem de destaque: Pexels