Data venia, divirjo! Uma homenagem ao ministro aposentado Marco Aurelio

Por Antonio Sepulveda & Igor De Lazari

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Então Presidente (Chief Justice) da Suprema Corte norte-americana, Charles Hughes afirmou que[u]ma dissidência em um Tribunal de última instância é um recurso […] para a inteligência de um dia póstero. Relator de notórias dissensões na Suprema Corte dos Estados Unidos, o falecido Justice Antonin Scalia declarou, em mesma linha, que opiniões divergentes não serão referenciadas e nem rememoradas, a menos que alguma qualidade superior de pensamento as qualifique para a posteridade e as habilite para a avant-garde do desenvolvimento intelectual do Direito.

Em outras palavras, Hughes e Scalia deixaram assente que a diversidade em colegiados amplificam e qualificam o debate ao introduzir novos dados, informações, ideias e pontos de vista, ao iluminar perspectivas até então ignoradas e ao possibilitar a neutralização de vieses, cascatas informacionais e heurísticas deletérios nos processos decisórios. Não à toa que a ilustre Justice Ruth Bader Ginsburg já vaticinava que não há nada melhor do que uma dissidência impressionante para levar o autor da opinião majoritária a refinar e esclarecer sua decisão inicial.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o recém aposentado Ministro Marco Aurélio prestigiou como ninguém a dissidência. Por se pautar principalmente pelo livre convencimento, não fazia questão de integrar a corrente majoritária, nem, muito menos, disputar a supremacia intelectual. Entusiasta dos “votos vencidos”, decidia com coragem e não temia a divergência, pois sabia que a divergência pode ser a semente da mudança. Já declarou, no julgamento do “Caso Ellwanger”, que, muitas vezes, deixo[u] de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário. Por isso, em centenas de casos, restou em posição isolada.

Mais precisamente, Marco Aurélio apresentou votos isolados em 13,52% (treze vírgula cinquenta e dois por cento) das 3098 (três mil e noventa e oito) votações de ações que trataram da constitucionalidade dos atos ou omissões de outros Poderes no período de 1988 a 2017. Integrou a minoria em quase 1/3 (um terço) delas. Certamente tinha consciência de que a unanimidade é tanto potencialmente poderosa quanto epistemicamente ambígua, suspeita e perigosa.

As manifestações de Marco Aurélio, nas deliberações do STF, sempre indicaram, para os mais atentos, a importância de seu papel no colegiado. Ainda que os ordenamentos jurídicos não garantam a nota da diversidade nos órgãos de cúpula do Poder Judiciário, institucionalistas nos alertam para os perigos que podem advir de órgãos colegiados homogêneos: a ausência de heterogeneidade pode radicalizar deliberações, nutrir heurísticas e promover desacertos. Preservar a diversidade é, assim, indispensável para o bom desempenho do Poder Judiciário.

Foram notórios, portanto, – apesar de ocasionalmente incompreendidos – os benefícios da atuação progressista e irrequieta do Ministro Marco Aurelio nas deliberações do Supremo, ao longo de sua trajetória de 31 (trinta e um) anos na mais alta Corte do país. Nessa linha, Carlos Velloso, ex-Ministro do STF, declarou que não conseguia compreender a garra de Marco Aurelio em arrosta a maioria da Corte, a fim de manter seus pontos de vista. Esse desafio intelectual de decidir não-intuitivamente, porém, asseguraram diversidade persistente e um permanente balançar de olhos sobre processos de nossa Suprema Corte, que, agora, podem ser perdidas.

Diversos julgamentos do Supremo demonstram que Marco Aurélio se posicionou à frente de seu tempo, antecipando e antevendo mudanças jurisprudenciais relevantes ao longo dos anos. Exemplos disso são inter alia as questões relativas (i) à possibilidade de progressão de regime para crimes hediondos, admitida pelo Ministro Marco Aurelio no Habeas Corpus (HC) nº 69567 de 1992 e reconhecida pelo STF apenas no HC nº 82959, de 2006; (ii) à impossibilidade de prisão do depositário infiel, defendida pelo Ministro no HC nº 72131, de 1995, e afirmada pelo STF no nº HC 87585, de 2008; e (iii) à possibilidade de utilização do mandado de injunção para superar omissões legislativas, defendida por Marco Aurelio no Mandado de Injunção (MI) nº 107 de 1989 e declarada pelo STF apenas no MI nº 670, de 2007.

Tal progressismo do agora ex-Ministro Marco Aurelio não se limitou às suas decisões: no seu Gabinete, discutia amplamente ideias e debatia sobre os casos sem meios termos. Manifestava-se publicamente sobre questões sensíveis submetidas ao Supremo e participou ativamente da instituição da TV Justiça, inclusive sancionando simbolicamente, na qualidade de Presidente da República interino, a lei que a instalou. Marco Aurelio, assim, qualificou e publicizou a atuação da Corte, desvelando suas divergências e qualificando sua responsividade democrática. Uma vez que o desenho institucional do Supremo Tribunal Federal atua e influencia o comportamento de seus membros, somente a dinâmica deliberativa da Corte poderá revelar a conduta do futuro Ministro. A ver!


Antonio Guimarães Sepúlveda
Doutor em Direito (UERJ)

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)


Imagem de destaque: STF

Publicado originariamente no Estadão e repostado no Conjur.

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