Letalidade policial no Rio de Janeiro: desafios e perspectivas

Por Ana Beatriz Mayr, Antonio Sepulveda & Igor De Lazari

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A violência sempre foi a última ratio na ação política, e a força sempre foi a expressão vísivel do domínio e do governoA força sem coibição só pode gerar mais força, e a violência administrativa em benefício da força – e não em benefício da lei – torna-se um princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar (Hannah Arendt)

Nesse mês a Polícia do Estado do Rio de Janeiro realizou a operação policial mais letal de sua história. Nessa operação, realizada para cumprir mandados de busca e apreensão e de prisão na Favela do Jacarezinho, periferia da Cidade do Rio de Janeiro, morreram 25 pessoas, incluindo 1 policial. Houve acusações de invasões domiciliares ilegais, de execuções e apreensões ilegais, o que motivou um pedido do porta-voz do Escritório da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Rupert Colville, para que o Ministério Público realize uma investigação independente e imparcial sobre a operação. Ele também pediu uma ampla e inclusiva discussão sobre o atual modelo de policiamento nas favelas brasileiras, presas em um «círculo vicioso de violência letal».

Essa operação retrata o panorama da segurança pública no Brasil, e, particularmente, do Rio de Janeiro. Numa de suas primeiras manifestações públicas, o Governador afastado do Estado do Rio de Janeiro, o ex-juiz federal Wilson Witzel, declarou a jornais brasileiros que a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro. Influentes políticos brasileiros são adeptos da ideia de que “violência se combate com violência” e, segundo pesquisa realizada anos atrás pelo Instituto Data Folha, aproximadamente metade da população brasileira concorda com a afirmação de que “bandido bom é bandido morto”.

Segundo Relatório Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, as execuções extrajudiciais no Brasil são generalizadas. Em 2020, a polícia do Estado do Rio de Janeiro matou 1.239 pessoas, 3 (três) pessoas por dia, número 52% maior que as 814 mortes registradas por policiais do Estado de São Paulo e 21% maior que as 1.021 mortes provocadas por policiais nos Estados Unidos no mesmo período. Dados indicam ainda que o sistema policial é seletivo: relatório da Anistia Internacional de 2015 aponta que das 1.275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro… 79% eram negros. Do mesmo modo, o Anuário de 2019 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública descreve que negros são 75,4% dos mortos pela polícia.

Embora o Rio não esteja dentre os dez Estados mais violentos do país, possui a polícia mais letal. Para o Ministério Público do Estado do Rio, a exposição constante de policiais a situações de violência armada é um dos principais fatores de risco para o disparo de arma de fogo: um terço de toda a força policial analisada já testemunhou outro policial ser baleado; 20% presenciaram um colega de farda ser morto e mais de 7% dos policiais já haviam sido baleados e feridos ao menos uma vez. Independentemente das razões para a brutalidade policial no Rio de Janeiro, o perfil operacional de suas polícias deslegitima as instituições de segurança policial, afeta a paz social e o regular desempenho dos serviços públicos, além de não reduzir os índices de criminalidade.

Tal estado de coisas motivou  o ajuizamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB (ADPF 635) objetivando o reconhecimento e a solução das graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública, notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial. Entre os pedidos deduzidos na ADPF 635, o PSB requer que Supremo Tribunal Federal (STF) determine ao Estado do Rio que conceba um plano visando à redução da letalidade policial; arquitete controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança, formule medidas objetivas e preveja recursos necessários para a sua implementação.

Há, ainda, inúmeros pedidos legalmente óbvios, dentre os quais a proibição de uso, pelo Estado do Rio de Janeiro, de helicópteros como plataformas de tiro; a proibição de expedição de mandados de busca e apreensão domiciliar coletivos ou genéricos; a proibição de ingresso forçado em domicílios à noite; e a preservação de todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais. Esses pedidos objetivam assegurar inter alia que o Brasil (e seus Estados) observem diretrizes nacionais e internacionais a que se sujeitam, a exemplo das exigências estabelecidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil – no qual o Estado brasileiro foi condenado não apenas pela violação às regras mínimas de uso da força, mas também por não prever protocolos – e dos “Princípios Básicos das Nações Unidas sobre o Emprego da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei”. Bem afirmando pelo Ministro Relator da ADPF, Edson Fachin, uma das consequências que emerge do reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado é a garantia de não-repetição, de modo que é justo que se espere que, a partir da condenação do Estado brasileiro, medidas concretas sejam adotadas para evitar que os lamentáveis episódios de Nova Brasília não se repitam.

Precisamente por razão disso o STF deferiu medida cautelar na ADPF (após o que ocorreu uma redução de 77% das mortes por intervenção policial) para, reconhecendo que o Estado do Rio de Janeiro falha em promover políticas públicas de redução da letalidade policial, determinar que não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do coronavírus (COVID-19), salvo em hipóteses absolutamente excepcionais. Relator da ADPF, o Ministro Edson Fachin argumentou, menos de um anos antes da operação realizada no Rio há poucas semanas, que uma das consequências que emerge do reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado é a garantia de não-repetição [de] lamentáveis episódios de abusos policiais.

Feito esse panorama, destacam-se algumas medidas indispensáveis para a reversão do quadro de segurança pública no brasil: 

  1. Medidas institucionais:
    1. critérios, dados e transparência: não há parâmetros detalhados aplicáveis às Forças Policiais Estaduais nos moldes previstos para as Forças Federais, sendo necessária a instituição de mecanismos de responsividade institucionais, que privilegiem a adequada sindicabilidade da atividade policial por membros do Ministério Público, do Judiciário e da sociedade, impondo-se a adoção de um Plano Nacional Estratégico, que institua medidas práticas e pragmáticas, a par das propostas abstratas e abrangentes previstas na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social;
    2. profissionalização: devem ser previstas medidas que privilegiem a atuação preventiva e socialmente responsável. No Rio de Janeiro, os cursos [de formação policial]são insuficientes, sendo necessárias  a profissionalização e a modernização gerencial da polícia;
    3. recursos e reconhecimento: policiais no Estado do Rio atuam numa série de ambientes hostis e dispõem de baixos índices de reconhecimento social, sendo premente reestruturar a Polícia, melhorar salários e atuar na ressignificação social da instituição;
    4. reforço dos mecanismos de incentivo e controle: é necessário o aprimoramento dos mecanismos de repressão de abusos praticados pelos policiais, incutir nos policiais o dever de zelo e responsabilidade nas suas ações e de seus pares.
  2. Políticas sociais: ambientes urbanos ordenados, dotados de serviços públicos (cf. pesquisas relativas à iluminação pública e criminalidade), fortalecem a confiança no Estado, o senso comunitário e o controle informal da criminalidade. É necessário, portanto, aprimorar e implementar planos de “urbanismo social”, reinstitucionalizando territórios e modernizando a administração da atividade policial.

Em síntese, resultados definitivos, segundo bem apontado por Renato Sérgio de Lima, Samira Bueno e Guaracy Mingardi, só poderão ser obtidos se, como reiteradamente destacado, enfrentarmos estruturalmente alguns temas sensíveis, como: a distribuição e a articulação de competências entre União, estados e municípios e a criação de mecanismos efetivos de cooperação entre eles e demais poderes e ministérios públicos; a reforma do modelo policial e de investigação estabelecido pela Constituição; o financiamento da área; e o estabelecimento de requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública no que diz respeito à formação dos profissionais, carreiras, transparência e prestação de contas, uso da força e controle externo.

Esses resultados servem para a realização da raison d’etre do Estado, que é a necessidade de garantir a segurança e os direitos invioláveis aos indivíduos (Hobbes). Transferindo ao Estado os seus direitos políticos, o indivíduo delega-lhe também suas responsabilidades sociais: pede ao Estado […] proteção contra os criminosos  (Arendt), de modo que um Estado que mata deturpa seus próprios propósitos.


Ana Beatriz Mayr
Bacharel (UFSC) e Especialista em Direito (MPSC)

Antonio Guimarães Sepúlveda
Doutor em Direito (UERJ)

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)


Imagem de destaque: William Santos, Unsplash

Publicação originariamente no IberICONnect e revisto e atualizado para o Interfases.

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