“Fiscais sem Fronteiras” e tributação internacional

Por Flavio Franco

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A partir dos efeitos econômicos da pandemia da covid-19 no Brasil, pode-se imaginar a dimensão das consequências dessa pandemia para os países mais pobres. No entanto, apesar da devastação causada pela introdução do coronavírus nos territórios nacionais, uma iniciativa resultante da conjugação de esforços entre a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Programa das Nações Unidas (PNUD), lançada em 2015, conhecida por “Tax Inspector Without Borders” (TIWB), aqui traduzida para “Fiscais sem Fronteiras”, tem auxiliado no fortalecimento da capacidade dos países em desenvolvimento de tributar efetivamente as empresas multinacionais, conforme relatório apresentado em 28 de setembro passado pelo Secretário-Geral da OCDE, Angel Gurría, e pelo Administrador do PNUD, Achim Steiner, durante um painel de discussão ministerial à margem da 75ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.

De acordo com tal relatório, o TIWB revelou-se de grande importância em tempos de covid – 19, por constituir relevante mecanismo de suporte ao incremento da arrecadação de todos os tributos devidos pelas multinacionais. Vale mencionar que a colaboração ocorrida no âmbito do TIWB gerou, até junho de 2020, mais de US$ 537 milhões em receitas adicionais para os países em desenvolvimento, afora avaliações fiscais globais, para fins de tributação da propriedade, superiores a US$ 1,84 bilhão. O conceito TIWB foi proposto numa reunião plenária da Força Tarefa da OCDE sobre Impostos e Desenvolvimento, na África do Sul, em 2012. Em 2013, após a conclusão de um estudo de viabilidade, o Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (DAC) e o Comitê de Assuntos Fiscais (CFA) da OCDE concordaram em estabelecer o TIWB para um mandato de 18 meses.

Já em 2014, a OCDE lançou um programa piloto em Gana. A parceria OCDE/PNUD só foi firmada na 3ª Conferência de Financiamento para o Desenvolvimento, em Adis Abeba, Etiópia, em julho de 2015, com vistas ao implemento da iniciativa TIWB. Em conformidade com a matéria divulgada pelos parceiros dessa iniciativa, o TIWB atualmente abrange 80 programas concluídos e em andamento, com alcance em 45 países e jurisdições da África, Ásia, Europa Oriental, América Latina e Caribe. Outros 19 programas já estão em fase de preparação. Dezesseis países mobilizaram seus agentes fiscais para prestar assistência a auditores de países em desenvolvimento.

Entre as administrações parceiras constam as de países engajados na cooperação Sul-Sul, incluindo Índia, Quênia, México, Marrocos, Nigéria e África do Sul, afora organizações regionais e internacionais, bem como doadores da designada Assistência Oficial ao Desenvolvimento (Official Development Assistence – ODA), o principal canal de financiamento criado pela OCDE para países em desenvolvimento. Estados Unidos, Canadá e Austrália são os países desenvolvidos que oferecem especialistas aos objetivos do TIWB. Em 2019, o PNUD iniciou o recrutamento de especialistas falantes de francês e espanhol para atender às demandas de idiomas específicos dos próximos programas da TIWB.

A joint OCDE/PNUD informa ainda, em seu sítio na internet, que o TIWB expandiu a troca de informações automáticas entre governos, o que poderá municiar o combate a fluxos financeiros ilícitos, como também tem impulsionado a abertura de investigações sobre crimes tributários e suas conexões com a corrupção. No mesmo informe, os parceiros fundadores do TIWB comunicam que novos programas cuidarão de negociações de tratados tributários, além de questões tributárias extrativas e ambientais. O relatório publicado este ano compreende a atuação do TIWB entre janeiro de 2019 e junho de 2020, com destaque para a crise econômica e de saúde global sem precedentes e suas profundas implicações para todos os aspectos da vida e da economia das pessoas. Como se sabe, o declínio acentuado no comércio global e doméstico provocou a queda vertiginosa de receitas tributárias, especialmente nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento e em outras economias que dependem fortemente do turismo e da hospitalidade.

Nesse cenário, considerou-se que as empresas multinacionais, particularmente aquelas que são altamente digitalizadas, provavelmente dispõem de meios que a habilitam a lidar mais facilmente com a crise atual, inclusive a prosperar, enquanto as pequenas e médias empresas têm maior probabilidade de enfrentar dificuldades. Em média, 70 dólares em receitas fiscais adicionais foram recuperados pelas Administrações anfitriãs para cada dólar gasto, entre 2012 e 30 de junho de 2020, em custos operacionais da TIWB. Ainda de acordo com aquele relatório, os países em desenvolvimento têm salientado que os programas do TIWB fornecem-lhes apoio a seus esforços para implantar padrões tributários internacionais, de tal forma a contribuir para a participação desses mesmos países no processo de definição de padrões na estrutura do BEPS – Base Erosion and Profit Shifting – Erosão da Base e Transferência de Lucros, em português, que é um projeto da OCDE, com apoio do G20, para o combate às estratégias internacionais de erosão de bases tributáveis por meio de planejamentos tributários agressivos, praticados por empresas multinacionais ou grupos econômicos com o fim de transferir lucros a países com tributação baixa ou inexistente, comumente conhecidos como paraísos fiscais.

Conforme anota o jurista Sérgio André Rocha, as grandes empresas multinacionais foram apontadas como grandes “malfeitores tributários” do Século XXI, enquanto que o chamado planejamento tributário “agressivo” se tornou o alvo de diversos países. Ele também ressalta que isso é decorrência do alcance global das multinacionais, atualmente situadas em um ambiente mundial no qual a economia digital e os intangíveis exercem um papel sem precedência nos fluxos comerciais internacionais. O projeto BEPS, como foi dito, objetiva cuidar do problema da evasão de tributos. Em paralelo, existe o problema da dupla tributação, motivo de queixa antiga e perene dos países exportadores de capitais. De fato, as regras de tributação podem constituir fator de atração de investimentos. Assim, as multinacionais, preocupadas com a maximização de seus lucros, pesquisam no mercado mundial, além de outros aspectos relacionados a cada um dos mercados nacionais, onde vigoram normas tributárias internacionais e domésticas de tributação mais favoráveis aos negócios.

Obviamente, o deslocamento da tributação para os países que recebem os investimentos das multinacionais desagrada os países onde se localizam as sedes dessas empresas. Portanto, de um lado está o interesse de que prevaleça a tributação do local da fonte do lucro; de outro lado está o interesse de que prevaleça a tributação do local da residência do investidor. Justamente para resolver essa disputa pelo tributo devido, os países celebram tratados internacionais para evitar a dupla tributação. Não é necessário muito esforço para concluir que os países em desenvolvimento, predominantemente importadores de capitais, são defensores da tributação no local da fonte da renda, ao passo que os países desenvolvidos, exportadores de capitais, apegam-se ao critério de residência como elemento de conexão da tributação.

A Sociedade das Nações, em 1943, editou uma Convenção Modelo sobre dupla tributação, em substituição ao primeiro Modelo, de 1928. Nessa nova Convenção, em razão da predominância de países latino-americanos, cuja relevância fora muito pequena entre os participantes da Segunda Guerra Mundial, então em curso, prevaleceu o critério da fonte da renda para a atribuição de competência tributária. Porém, esse último Modelo foi revisto em 1946 para privilegiar o critério do local da residência, o que passou a favorecer os países desenvolvidos. A OCDE, oficialmente criada em 1961, publicou em 1963 a primeira versão do Modelo de Convenção sobre Dupla Tributação da Renda e do Capital. Fixando-se, desde então, no critério da residência, a OCDE chegou à conclusão, conforme reconhecido por seu Conselho Fiscal, em 1965, que tal padrão não era apropriado em tratados entre países industrializados e países em desenvolvimento, porque os fluxos de renda são em grande parte desses últimos para os primeiros e o sacrifício de receita seria unilateral.

Em 1967, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em sua Resolução nº 1.273, ao ressaltar a necessidade de encorajar a celebração de tratados tributários bilaterais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, solicitou ao Secretário-Geral que instituísse um grupo de trabalho ad hoc, composto por especialistas e administradores tributários nomeados pelos governos, com a tarefa de explorar, em consulta com agências internacionais interessadas, formas e meios para facilitar a conclusão de tratados fiscais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento para evitar a dupla tributação, incluindo a formulação de possíveis diretrizes e técnicas aceitáveis para ambos os grupos, de tal forma a salvaguardar totalmente seus respectivos interesses de receitas.

Depois de várias reuniões entre especialistas e administradores tributários, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou em 1980 a Convenção Modelo das Nações Unidas sobre Dupla Tributação entre Países Desenvolvidos e em Países em Desenvolvimento. Deve-se mencionar que, apesar da proclamada intenção de favorecer os países em desenvolvimento, o modelo aprovado pela ONU tomou como base o Modelo preparado pela OCDE, dando-se prevalência, portanto, ao critério do domicílio, embora admitindo algumas modificações favoráveis à prioridade, não a exclusividade, do princípio da fonte, segundo o testemunho do representante do Brasil no Comitê de Especialistas da ONU, Francisco Dornelles. Seja como for, a tentativa de encontrar a “parcela da receita tributária justa” (fair share of tax) que cabe a cada país impõe uma abordagem multilateral, pois a globalização e o emprego de instrumentos tecnológico-digitais que dinamizaram a economia mundial criaram um ambiente favorável à evasão fiscal mediante planejamentos tributários internacionais “agressivos”.

Diante de tal panorama e sabendo-se que a iniciativa do TIWB também visa a atrair os países em desenvolvimento ao projeto de combate ao BEPS, deve-se desconfiar se, por trás do discurso da boa vontade em benefício dos mais pobres, não se esconde a pretensão de privilegiar a tributação no país da residência dos exportadores de capitais. Marcus Lívio Gomes, entre outros, assinala que, embora conste no projeto de combate ao BEPS a pretensão de neutralidade quanto à tributação na fonte versus tributação na residência, o suposto intento de se enfrentar o planejamento abusivo tem sido usado para favorecer o país de residência. Este jurista esclarece que as alternativas propostas, como um todo, atribuem ao Estado de residência a decisão a respeito da lei aplicável, a sua própria ou a do Estado da fonte.

Nessa linha de raciocínio, vale apostar na suspeita de que os programas que serão instituídos, em consonância com as promessas apresentadas no âmbito do TIWB, para orientar a negociação de acordos sobre tributação internacional, venham montados dentro de estratégias em prol do país de residência. Enfim, a despeito das boas intenções noticiadas e dos resultados benéficos relatados, convém empregar boa dose de desconfiança sobre o que o TIWB efetivamente trará de positivo para os países em desenvolvimento, para além do tempo da pandemia da covid-19, quando se leva em conta a implantação do projeto BEPS no âmago da iniciativa TIWB.


Flavio Franco
Mestre em Direito (UFRJ)

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