Por Antonio Sepulveda & Igor De Lazari
Embed from Getty ImagesNo recente julgamento do Habeas Corpus (HC) nº 500.080/SP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) “puxou a orelha” dos tribunais inferiores – e nominalmente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – ao afirmar que a insistência de tribunais locais e juízes de primeira instância em reiteradamente desconsiderar posicionamentos pacificados no âmbito tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto do Supremo Tribunal Federal dá a entender que a função constitucional dessas cortes, de proferir a última palavra quanto à legislação federal (STJ) e quanto à Constituição (STF), é desnecessária, tornando letra morta os artigos 105, III, e 102, I, ‘a’, e III, do texto constitucional; e que o que vemos no Tribunal de São Paulo é uma reiteração permanente em descumprir, uma afronta às cortes superiores em nome do livre convencimento motivado, da persuasão racional, que são fundamentos num direito artesanal, não num direito de massa que nós vivenciamos.
Na oportunidade, afirmou ainda que, quando se trata de uma questão de direito, se esse entendimento é pacificado em súmulas, em jurisprudência, não faz o menor sentido continuar a haver essa dissonância de entendimentos e que o STJ “dá esse exemplo”: ao que vem do STF, nós aderimos imediatamente, com absoluta disciplina, e nossas divergências deixamos para a academia.
É inconteste que a análise é dura, realista e necessária. Mas é parcialmente injusta. Isto porque parece se amparar numa retórica de autoengano, pautada numa integridade, sistematicidade e uniformidade decisórias inexistentes no STJ e/ou no STF.
De maneira dominante, assevera-se que o Novo Código de Processo Civil alçou os precedentes a um “outro patamar”, assemelhando ou aproximando o sistema jurídico brasileiro de precedentes ao modelo do common law (cf. Daniel Neves, Manual; Barroso; Humberto Theodoro), que é caracterizado pela ênfase na interpretação do precedente e pela extensão dos princípios articulados em um caso a outro análogo (cf. Graber). Reservas à parte, “é o que é” o sistema processual atual no Brasil, que se orienta, para propósitos de uniformização, nos precedentes dotados de “eficácia normativa”.
Predomina nos Estados Unidos e no Brasil que precedentes possuem diferentes status no que se refere à “eficácia”. No modelo americano, que se baseia num parâmetro de hierarquização de natureza material, há “superprecedentes constitucionais” – que gozam de status inferior apenas às Emendas – e precedentes ordinários. Por lá, os superprecedentes são praticamente insuperáveis, por razão do amplo consenso obtido em relação à matéria judicializada, dos princípios de justiça subjacentes à decisão ou da prática duradoura que apoia as decisões que originaram o precedente.
No Brasil, prevalece um parâmetro de natureza primariamente formal. Nesse sentido, Barroso afirma que as súmulas vinculantes, os julgados produzidos em controle concentrado da constitucionalidade, os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, as orientações oriundas do julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva e de incidente de assunção de competência são dotados de “eficácia normativa em sentido forte”. Por outro lado, os enunciados da súmula simples da jurisprudência do STF e do STJ sobre matéria constitucional e infraconstitucional, respectivamente, e as orientações firmadas pelo plenário ou pelos órgãos especiais das cortes possuem “eficácia normativa em sentido fraco”.
Todos, porém, são obrigatórios e devem ser seguidos (são, portanto, law of the land); a única diferença é que precedentes que dispõem de “eficácia normativa em sentido forte” possibilitam o ajuizamento de reclamação. Foi nessa lógica de subordinação jurisprudencial obrigatória, pela qual Tribunais inferiores devem obediência “ao que vem de cima”, que se baseou a ratio da decisão do STJ.
Baseando-se isoladamente na avaliação “moralista” realizada no HC 500.080/SP, porém, parece-nos que o STJ apresenta um retrato distorcido e irreal do panorama jurisprudencial brasileiro. Isso porque:
- há mais de 300 (trezentas) súmulas do STF e do STJ [tacitamente] superadas – por leis ou pela própria jurisprudência dos Tribunais – sem que hajam sido revogadas (cf. De Lazari; Borges Neto. Vade Mecum de Súmulas); ignorar súmulas obsoletas e supostamente inaplicáveis revela desprezo pela própria jurisprudência;
- é possível reunir às dúzias questões jurídicas sensíveis quanto às quais o STJ diverge do STF. Ilustrativamente:
- período depurador e maus antecedentes: o STF possuía orientação no sentido de de que não se revela legítimo […] considerar como maus antecedentes condenações criminais cujas penas, cotejadas com infrações posteriores, extinguiram-se há mais de cinco (05) anos; o STJ, porém, possuía sedimentada jurisprudência no sentido de que as condenações criminais cujo cumprimento ou extinção da pena ocorreu há mais de 5 anos, a despeito de não implicarem reincidência nos termos do que dispõe o art. 64, I, do CP, são hábeis a caracterizar maus antecedentes; apenas recentemente o STF definiu, ao julgar o Tema 150 da Repercussão Geral, que não se aplica para o reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal.
- duração da medida de segurança: para o STF, a duração máxima é de 30 (trinta) anos (cf. HC 107.432/RS) – limite que deve ser revisto ex vi da reforma processual recente; para o STJ, o tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado (súmula 527);
- confissão e atenuante genérica: para o STF, a confissão qualificada não é suficiente para justificar a atenuante prevista no artigo 65, III, “d”, do Código Penal (cf. HC 119.671/SP); para o STJ, a confissão dita qualificada enseja a aplicação da atenuante do art. 65, III, d, do Código Penal (cf. AgRg no REsp 1.198.354/ES);
- reincidência, confissão e compensação: para o STF, prepondera sobre a confissão a reincidência na dosimetria da pena (cf. HC 135.819/DF; para o STJ, é possível, na segunda fase da dosimetria da pena, a compensação da atenuante da confissão espontânea com a agravante da reincidência (Tema 585);
- princípio da valoração da prova: STF e o STJ aplicam de maneira distinta o “princípio da valoração ou valorização de prova” para propósitos de admissão do Recurso Extraordinário e do Recurso Especial, respectivamente;
- interpretação da súmula 456 do STF: o STJ aplica a súmula 456 do STF de maneira mais ampla e irrestrita do que o próprio STF;
- calendarização de saídas temporárias: apesar de o STF e o STJ (julgamento recente sob o rito dos recursos repetitivos – REsp 1.544.036/RJ) haverem admitido a possibilidade de definição de calendário anual de saídas temporárias por ato judicial único, é possível identificar decisão recente do STJ inadmitindo a calendarização (HC 368.064 /SC);
- suspensão do processo e prazo de prescrição (art. 366 do CPP): para o STJ, o período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada (súmula 415 do STJ); por outro lado, o STF possui decisões afirmando que a suspensão da prescrição [deve ocorrer] por prazo indeterminado na hipótese do art. 366 do Código de Processo Penal (cf. RE 460.971/RS; ARE 678.816/RS);
- prazo de prescrição da ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil: para o STF, o prazo de prescrição é 3 (três) anos (cf. RE 669.069/MG); para o STJ, porém, o prazo de 5 (cinco) anos (AgRg no AREsp 768.400/DF);
- limites do controle de constitucionalidade pelos Poderes Executivo e Legislativo: há decisão do STF afirmando que o controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário, de modo que os Poderes Executivo e Legislativo, por sua chefia […] podem tão só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais (cf. ADI 221-MC/DF); por outro lado, o STJ já decidiu que o poder executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional (cf. REsp 23.121/GO);
- devolução dos benefícios previdenciários recebidos por força de tutela antecipada revogada: para o STJ, a reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos (cf. REsp 1.401.560-MT; Informativo 570); há, porém, decisões do STF afirmando que benefício previdenciário recebido de boa-fé pelo segurado, em decorrência de decisão judicial, não está sujeito à repetição de indébito, em razão de seu caráter alimentar (cf. ARE 734.242 AgR/DF). Nessa questão, inclusive, há divergência no próprio STJ. Isto porque, apesar de o STJ haver decidido no REsp 1.401.560/MT, no rito dos recursos repetitivos, que é devida a devolução, pelo segurado, de valores relativos a benefício previdenciário pagos em decorrência de tutela antecipada que posteriormente veio a ser revogada, a Corte Especial do STJ, posteriormente, decidiu de maneira diametralmente oposta, assentando a irrepetibilidade de valores recebidos de boa-fé, quando a antecipação da tutela, concedida anteriormente, chega a ser referendada em decisão de segundo grau, vindo a ser revogada apenas pelo STJ, em sede de Recurso Especial (cf. EREsp 1.086.154/RS). Tamanha a dúvida gerada que o Centro de Inteligência da Justiça Federal remeteu Nota Técnica aos Tribunais Regionais Federais do país e ao próprio STJ (Nota Técnica n. 005/2017) suscitando dúvidas quanto à solução da questão;
- §5º do art. 988 do CPC e nova hipótese de reclamação: para o STF, o inciso II do § 5º do artigo 988 do CPC prevê uma outra hipótese de cabimento de reclamação (cf. Rcl 40.548 ED/DF; Rcl 37.853 AgR/SP); para o STJ, porém, não há coerência e lógica em se afirmar que o inciso II do § 5º do art. 988 do CPC veicule nova hipótese de cabimento da reclamação (cf. Rcl 36.476/SP; Informativo 669);
- insignificância no caso de crimes tributários e descaminho: o STJ demorou mais de 3 (três) anos para adequar sua jurisprudência à orientação definida pelo STF; o STF, de imediato, afirmou que as Portarias MF nº 75 e 130, de 2012, do atual Ministério da Economia, que majoraram o valor mínimo para cobrança de débitos com a União de 10 (dez) mil reais para 20 (vinte) mil reais produziram efeitos penais (cf. HC 120.617/PR, HC 122.213/RS e HC 121322/PR). Durante anos, porém, até o julgamento do REsp 1.709.029/MG, de 2018, o STJ decidiu que o novo montante definido pela Portaria MF nº 75/12 não poderia ser considerado para efeitos penais (cf. AgRg no AREsp 331.852/PR e AgRg no AREsp 303.906/RS).
É possível ainda mencionar inúmeras outras questões quanto às quais as próprias Turmas do STJ (cf. artigo recente publicado neste Jornal) e/ou do STF divergem entre si, e que, por isso, “desorientam” os Tribunais inferiores. Já é naturalizada, na doutrina e na jurisprudência, a dicotomia “posição do STJ” e “posição do STF”.
Não bastasse, a aplicação de precedentes já suscita, natural e normalmente, dúvidas quanto à sua aplicabilidade e ao seu alcance, não apenas no Brasil – cf. a propósito o precedente Parents Involved in Community Schools v. Seattle (2007), no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) debateu intensamente qual seria a tese (holding) subjacente à paradigmática decisão no precedente Brown v. Board of Education (1954).
Portanto, a retórica do STJ só será pertinente quando a integridade e a obediência jurisprudenciais puderem ser observadas na sua própria práxis, e quando as divergências se limitarem a dúvidas interpretativas legítimas não pautadas num ato de “indisciplina” deliberado.

Antonio Guimarães Sepúlveda
Doutor em Direito (UERJ)

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)
Imagem de destaque: Gustavo Lima/STJ
Revisado no dia 24/08/2020.