O SUS e o desequilíbrio financeiro e orçamentário no federalismo fiscal brasileiro

Por Daniel Vieira Marins

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Nos últimos meses, temos observado um intenso movimento na saúde pública para enfrentar a pandemia decorrente do novo coronavírus (COVID-19). Em poucas semanas, inúmeros Estados e Municípios firmaram diversos contratos com hospitais e empresas do setor de saúde para oferecer leitos, respiradores e equipamentos de tratamento intensivo para pacientes infectados pela COVID-19.

A Imprensa tem divulgado constantemente que Estados e Municípios têm se empenhado para adquirir respiradores para suas unidades de tratamento, tal como se verifica, em caráter ilustrativo, nos Municípios de Paranavaí/PR  e Camaçari/BA e nos Estados do Pará e de São Paulo, culminando até na celebração de contratos administrativos emergenciais de prestação de serviços hospitalares, tal como feito pelo Município de Campinas/SP, que, na prática, arrendou um hospital inteiro a fim de transformá-lo em uma unidade exclusiva para tratamento da COVID-19.  Se, por um lado, os entes subnacionais demonstram uma postura proativa, por outro, nota-se certa letargia por parte do governo federal que – sem ter nomeado, desde meados do mês de maio, um Ministro da Saúde – se limitou a efetuar um repasse de 60 bilhões de reais, divididos em quatro parcelas iguais ao longo do ano, em favor dos governos subnacionais. Tal valor deve representar  entre 30% a 40% do que os Estados deixarão de arrecadar, a título de tributos, durante o ano de 2020, em virtude dos impactos causados pela pandemia.

O caráter emergencial das medidas acabou, por via oblíqua, direcionando luz sobre um antigo problema do federalismo fiscal brasileiro: o descompasso entre a gestão dos serviços públicos de saúde e o seu financiamento. Vale dizer: haveria equilíbrio entre receitas e despesas públicas, no que tange às atribuições de cada um dos entes federados na esfera da saúde?

A razão pela qual Estados e Municípios procuraram reorganizar, de maneira urgente, a sua estrutura de saúde, antecipando-se à União – a qual, por sinal, pouco fez nesse sentido –, vai além dos problemas (e das diversas polêmicas) existentes, atualmente, no Planalto Central. Na realidade, governadores e prefeitos estão muitos mais próximos do cotidiano (e, portanto, das dificuldades) da população, estando, assim, passíveis de maior accountability (leia-se, “responsabilidade política”). Uma vez que nos Estados e, principalmente, nos Municípios, os cidadãos estão “mais próximos” da Administração Pública (o que viabiliza uma melhor análise política das ações tomadas pelos órgãos públicos), são os prefeitos e os governadores os primeiros a serem exigidos pela população a tomar providências para resolver os problemas na área da saúde pública. E isso, por sinal, é positivo, já que, nas palavras de Paul Boothe, as democracias funcionam melhor quando os cidadãos são capazes de responsabilizar os governantes pela forma como gastam o dinheiro público.

Todavia, a estrutura de responsabilidade política e a capacidade de resposta descritas não se alinham à previsão constitucional, dado que a saúde pública é competência comum da União, dos Estados e dos Municípios (art. 23, II, da Constituição Federal (CF)). No que diz respeito aos Municípios, a Constituição afirma expressamente que compete ao governo local prestar serviços de atendimento à saúde da população (art. 30, VII, da CF), ainda que com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados.

A situação se torna mais tormentosa quando se observa que, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), há uma clara diferença entre a forma de aplicação dos gastos mínimos pelos entes políticos. Enquanto a União deve aplicar, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, ao menos 15% da receita corrente líquida (art. 198, §2º, I, da CR/88); os Estados devem aplicar, no mínimo, 12% da arrecadação de seus impostos (ITCMD, ICMS e IPVA) e dos recursos recebidos da União com base nas regras de repartição de receitas (IR incidente sobre os rendimentos pagos aos seus servidores públicos, FPE e 10% do IPI) (art. 6º da Lei Complementar n. 141, de 2012); e, por sua vez, os Municípios devem aplicar, no mínimo, 15% da arrecadação de seus impostos (IPTU, ITBI e ISS), e dos recursos recebidos da União e dos Estados com base nas regras de repartição de receitas (IR incidente sobre os rendimentos pagos aos seus servidores públicos, FPM e 25% da CIDE-Combustíveis) (art. 7º da Lei Complementar n. 141, de 2012).

Tendo em vista que somente a União tem competência para exigir as contribuições com sede nos artigos 149 e 195 da Constituição Federal (de longe, as principais fontes tributárias do ente central, em especial no que tange à CSLL, à COFINS e à contribuição para o PIS) e que existe uma repartição constitucional rígida de competências tributárias, nota-se que o peso orçamentário do gasto mínimo em serviços públicos de saúde é muito menor para União.

Nesse aspecto, cumpre esclarecer que o problema em debate não diz respeito ao gasto per capita realizado pela União, Estados e Municípios na saúde pública, mas sim à (in)capacidade financeira de os governos subnacionais cumprirem com as suas obrigações orçamentárias na esfera da saúde e com seus outros deveres constitucionais (principalmente os descritos nos artigos 23 e 30 da CF).

Por conseguinte, sem a possibilidade de instituir contribuições especiais (art. 149 da CR/88) e ante a impossibilidade de exigir novos impostos (haja vista a rígida repartição de competências tributárias definida pela Constituição), Estados e Municípios se veem estrangulados financeiramente para custear seus gastos obrigatórios (e.g., educação, segurança pública), o que inclui, por óbvio, as despesas com saúde. Além de estarem na linha de frente de combate para o enfrentamento da pandemia (com a população local atenta às medidas adotadas por prefeitos e governadores), os entes federados precisam contornar o “engessamento orçamentário”, desempenhando atribuições administrativas que superam sua capacidade tributária e financeira (mesmo que se incluam as verbas decorrentes das transferências intergovernamentais).

Quanto ao “engessamento orçamentário” e à capacidade financeira dos entes federados, deve-se relembrar que, ao contrário da União, os Estados e os Municípios não possuem competência para efetuar emissão de moeda (art. 48, XIV, da CF), muito menos para comprar e vender títulos da dívida pública para regular a oferta de moeda e a taxa de juros por meio de uma instituição como o Banco Central (art. 164, §2°, da CF). Além disso, os governos subnacionais, nas hipóteses de operações de crédito junto a organismos financeiros internacionais, as quais, em regra, exigem prestação de garantia pela União, dependerão do cumprimento das regras constantes da Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 40 Lei Complementar n. 101, de 2001). Deverão ainda cumprir as exigências legais para recebimento de transferências voluntárias, o que torna muito mais simples a obtenção de um empréstimo pela União do que por parte dos Estados e Municípios. Rememore-se ainda que a antiga prática de se realizar operações de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente federativo que a controle, na posição de beneficiário do empréstimo, foi vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 36, caput, da Lei Complementar n. 101, de 2000), o que, apesar de conferir maior transparência à gestão fiscal dos governos subnacionais, significou a diminuição dos instrumentos de finanças públicas disponíveis para a obtenção de novos recursos.

Quanto a isso, Raul Velloso ressalta, com base nos trabalhos de André Lara Resende, que a União tem capacidade de financiar uma parte relevante do seu déficit mediante emissão de base monetária de forma indireta. Isso porque, em razão de a Constituição Federal proibir o financiamento direto pelo BACEN, o Tesouro Nacional (TN) emite os títulos que tenta colocar junto aos bancos pagando algo não tão distante da taxa Selic, sendo que, ao final, o BACEN acaba emitindo mais base monetária para comprar esses títulos dos bancos pagando, no máximo, a taxa básica, procedimento que não pode ser adotado por Estados e Municípios.

Logo, tendo em vista o contexto de finanças públicas em exame, verifica-se que o SUS se estrutura sobre pilares (tributários e financeiros) desnivelados, o que gera prejuízo para a aplicação de políticas públicas no setor. E, nesse aspecto, a busca emergencial dos entes subnacionais por respiradores e equipamentos médicos com o fito de aparelhar leitos hospitalares e proteger seus cidadãos do perigo da COVID-19 contrapõe-se à lentidão do governo federal em proceder as transferências de verbas públicas e realizar as urgentes aquisições de materiais hospitalares, a ponto de revelar que o sistema de saúde, apesar de único, gera muito mais deveres para alguns do que para “outros” (leia-se, governo central).


Daniel Vieira Marins
Mestre e Doutor em Direito (Finanças Públicas, Tributação & Desenvolvimento) pela UERJ. Procurador da Fazenda Nacional.


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