Capacidade Institucional e(m) crise: a adjudicação de direitos ampliada pela pandemia e as limitações epistêmicas e operacionais do Judiciário brasileiro

Por Karina Denari

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Segundo dados recentes disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP),  o quantitativo de processos judiciais relacionados à pandemia do coronavírus (COVID-19), em relação ao número de casos registrados no país, têm tido crescimento acelerado. De acordo com o recém-criado Observatório de Casos, chegamos a 4.000 ações distribuídas em todos os tribunais estaduais, com relativa concentração de casos nos Tribunais Estaduais de Minas Gerais, Pernambuco e Paraná, destacando-se as ações de Habeas Corpus (HC), os procedimentos de Juizados Especiais Cíveis (JEC) e os Mandados de Segurança (MS) .

Por meio destas classes processuais apresentadas pelo CNJ e pelo CNMP, percebe-se que o perfil de judicialização está relacionado às falhas sanitárias e à violação de direitos humanos perpetradas pelo sistema carcerário brasileiro (HC); às consequências contratuais relacionadas à decretação da pandemia e às medidas de distanciamento social que vêm afetando as relações privadas (JEC); e às demandas relacionadas à provisão de serviços básicos pelo Estado (MS).

Os expressivos números e as ênfases temáticas que o Poder Judiciário vem enfrentando com o aumento da litigiosidade são corroborados pela academia internacional, que indica que a pandemia intensificará ainda mais – especialmente nos países em desenvolvimento – a adjudicação de direitos socioeconômicos, em especial os de caráter emergencial e de direitos humanos.

Nesse momento de intensa adjudicação e de urgência nas tutelas jurisdicionais em razão do agravamento das vulnerabilidades pré-existentes e da piora dos indicadores socioeconômicos, é necessário refletir sobre dois sensíveis limites relativos à capacidade institucional do Poder Judiciário no momento atual da pandemia: (i) o limite epistêmico, que recomenda maior deferência à comunidade científica; e (ii) o limite de efetividade decisória, que recomenda maior integração do Poder Judiciário a outras instâncias governamentais e sociais.

Limitações epistêmicas

É essencial que o Judiciário proteja a posição científica, garanta a manutenção das instituições democráticas que produzem conhecimento confiável e adote decisões que espelhem opiniões técnicas e científicas, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).

A concretização mais recente dessa pauta se deu no recente voto do Ministro Relator Luís Roberto Barroso nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431, que, ao analisar a constitucionalidade da Medida Provisória nº 966, de 2020, fixou os seguintes critérios de responsabilização de agentes públicos no contexto pandêmico:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos;  (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias, internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

O posicionamento de proteção e deferência à Ciência também aparece em artigos de opinião do Ministro Luiz Fux, publicados no Jornal O Globo e na Folha de São Paulo, nos quais reitera que “na solução dos hard cases humanos reclama-se a humildade judicial de recorrer-se à ciência”. Segundo o Ministro, “devem os juízes ouvir os técnicos”.

Apesar de a comunidade acadêmica e científica festejar a decisão como um avanço na pauta de valorização da Ciência em face do “terraplanismo” de alguns agentes públicos, segundo Rachel Herdy (UFRJ) o STF ainda precisa definir melhor o que entende por “consenso científico”. De qualquer modo, a Ciência é preferível frente a outras fontes de produção de conhecimento por atender a métodos, procedimentos de verificação (peer review) e de validação de suas verdades, pela confrontação de opiniões diversas e abertura a novas hipóteses. Ciência é verdade em movimento e, como tal, produzida pelos melhores métodos postos à nossa disposição em um determinado momento.

O tema é objeto de discussão na literatura estrangeira há bastante tempo. Uma das precursoras do Direito Constitucional Comparado nos Estados Unidos, a professora Vicki C. Jackson (Harvard), deve lançar em breve um livro focado na importância das “Instituições de Conhecimento” (Knowledge Institutions) para o sucesso de democracias constitucionais.

Segundo a autora, a produção de conhecimento confiável, criado, testado e disseminado por “instituições de conhecimento” é a essência e o fundamento de democracias constitucionais. Tais instituições – universidades públicas e privadas, organizações da sociedade civil, a mídia, e, ainda, órgãos do governo – fornecem uma sólida base epistêmica da democracia representativa. Por isso, é importante conceituá-las e tratá-las como parte de um ecossistema de conhecimento que requer proteção constitucional e automonitoramento eficaz. Essa base epistêmica depende de quatro pilares para produção de um conhecimento confiável: imparcialidade e independência da instituição responsável pela produção dos dados, objetividade dos dados, abertura epistêmica e pluralidade de fontes e áreas do saber. A autora afirma que poucas Constituições no mundo protegem e exigem que instâncias governamentais produzam e se pautem sobre informação de qualidade e confiável.

No Brasil, o debate surgiu recentemente após decisão do Ministério da Saúde de alterar a forma de divulgar os dados sobre a COVID-19, ocasião em que omitiu informações sobre o número acumulado de casos e o detalhamento de informações por Estados. Em meio à polêmica, dois dados divergentes foram divulgados em um intervalo de poucas horas, quando anunciou a nova proposta. Em junho deste ano, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou que o governo federal divulgasse na íntegra os dados relativos ao contágio e às mortes pelo novo coronavírus, como era a praxe do Ministério da Saúde.

Em razão das falhas na divulgação de informações oficiais, o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS), associação civil sem fins lucrativos, e o “consórcio de veículos de imprensa”, formado por diversas entidades de imprensa do Brasil, assumiram a dianteira no episódio para divulgar informações faltantes sobre dados da pandemia, de modo a assegurar a transparência na divulgação das informações.

Mas nem sempre é assim. Diversos dados produzidos pelo governo dificilmente podem ser substituídos por dados coletados e fornecidos por outros organismos, seja pela natureza do dado, seja pela dificuldade de acesso à informação. Daí a importância, apontada pela professora V. Jackson, de uma proteção constitucional à qualidade e à confiabilidade da produção de dados governamental.

Limitações de efetividade decisória

É essencial que os membros do Judiciário se conscientizem de seus limites quanto às capacidades institucionais relativas ao monitoramento e à efetividade de suas decisões. Isso demanda, dentre outros pontos, ampliar a coordenação institucional e investir na transparência de dados e no acompanhamento do cumprimento das ordens judiciais pelo Ministério Público e por organismos da sociedade civil.

Segundo já identificado na literatura internacional, especialmente no contexto da pandemia, não se pode dizer que há possibilidade de uma atuação não-integrada entre diversos entes governamentais (federais, estaduais, municipais), legislativo e do sistema de justiça, no que pode se chamar de uma teoria de “governança de emergência”. O Poder Executivo não ocupa um papel tão central como se costuma acreditar, especialmente em crises nas quais as informações são altamente descentralizadas.

Por isso, o papel do Judiciário como articulador e catalizador das específicas funções sociais de cada órgão ocupa papel central – não podendo ser desconsiderado nesse contexto. Além disso, é preciso que o Judiciário seja demandado e entregue, por meio de suas decisões, propostas concretas para o aprimoramento dessa coordenação e efetivos planos de ação sobre as etapas que serão necessárias para o cumprimento das ordens ali colocadas – uma espécie de itinerário da decisão judicial.

Já há iniciativas impulsionadas pelo CNJ de desenvolvimento de relações de coordenação com outras instituições. Como exemplo, há o “Observatório de Casos” citado, que tem como objetivo o aperfeiçoamento da atuação das instituições em ocorrências de grande impacto e repercussão, incluindo a implantação e modernização de rotinas, prioridades, organização, especialização e estruturação dos órgãos competentes de atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Além destas iniciativas, o CNJ tem, há diversos anos, atuado em parceria com outras instituições internas e externas ao Judiciário para a realização de pesquisas, diagnósticos e projetos, de modo a resultar num vasto catálogo de temas, rigorosamente elaborados com aprofundamento técnico e metodológico. Entende-se que tais parcerias são centrais para a condução de estudos e iniciativas com perspectivas complementares e para o aprimoramento das informações disponibilizadas pelo órgão a partir do uso de bases de dados compartilhadas. Tais informações são relevantes para aparelhar o Poder Judiciário e assegurar maior efetividade às suas decisões.

Segundo afirmado por Daniel Cardinalli em artigo recente, decisões transformadoras pouco podem sozinhas, devendo vir acompanhadas de efetivo e enérgico engajamento social, especialmente quando tocam temas que envolvem reações que pretendem sabotar ou reverter uma dada decisão judicial (o chamado backlash). Estudos nessa linha têm enfatizado que, em casos que envolvem diversos atores e ordens complexas para resolução de problemas de grande abrangência, são necessários maior empoderamento e intensa participação de stakeholders – sejam eles atores políticos, organizações de direitos humanos ou instituições públicas destinatárias das decisões ou que, de algum modo, deverão implementá-las.


Karina Denari
Karina Denari é Pesquisadora da FGV Direito SP e Doutora em Direito (UFRJ)


Imagem de destaque: STF

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