Legislando judicialmente sobre direitos LGBT

Por Antonio Sepulveda, David Kemp & Igor De Lazari

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Democracias lutam perpetuamente para harmonizar o que é legal (e ilegal) e o que é justo (e injusto). Uma questão que recebeu atenção significativa nas decisões legislativas e judiciais nas democracias ao redor do mundo são os direitos dos indivíduos LGBTQ em todos os aspectos da sociedade – emprego, direito da família, herança, serviço militar etc. Em muitos países, a maior parte do progresso no que diz respeito aos direitos dos indivíduos LGBTQ provém dos tribunais e não do Legislativo.

Neste artigo, consideramos os caminhos que duas democracias diferentes – Brasil e Estados Unidos – tomaram para remediar o atraso do legislador na proteção dos direitos dos indivíduos LGBTQ em cada país.

Proteções em evolução para indivíduos LGBTQ no Brasil

O Brasil abordou questões de casamento entre pessoas do mesmo sexo, crimes de ódio contra indivíduos LGBTQ, regras parentais e sucessórias sobre parceiros do mesmo sexo.

Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 que o casamento homossexual merece idêntica proteção nos termos da lei. Posteriormente, em maio de 2017, o STF julgou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro em Recursos Extraordinários (REs nº 646721 e nº 878694). O artigo prescreve diferentes regras de herança para cônjuges e parceiros. A conclusão do Tribunal foi que não há justificativa para o tratamento diferenciado de cônjuges e parceiros (incluindo um parceiro gay) estabelecido pelo Código Civil.

Mais recentemente, o STF afirmou mais uma vez seu papel na extrapolação da legislação existente para proteger indivíduos LGBTQ: descreveu a homofobia e a transfobia como um crime de ódio, mesmo que a lei brasileira de crimes de ódio não defina a discriminação com base na orientação sexual como um crime.

O Brasil não possui um estatuto de crimes de ódio que proíbe especificamente crimes motivados por orientação sexual ou identidade de gênero (a menos que isso envolva um crime mais grave e.g. homicídio ou lesão corporal), embora a Constituição recrimine qualquer forma de discriminação (artigos 3º, IV e 5º). A definição legal brasileira de crime de ódio inclui apenas praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art. 20 da Lei nº 7.716/1989).

Por isso, em 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou as acusações a Deputado Federal (Inq nº 3590), afirmando que fazer uma manifestação de natureza discriminatória em relação aos homossexuais não é crime, de acordo com o art. 20 da Lei 7.716/86. Este Deputado publicou no Twitter que os sentimentos podres dos gays levam ao ódio, ao crime e à (sic) rejeição. Inclusive, o Ministro Luís Roberto Barroso reconheceu que o tweet era ruim e extremamente infeliz, mas não era ilegal para fins criminais (princípio do nullum crimen sine lege).

A recente mudança do STF se deve à falha legislativa em agir por um longo período – há pelo menos 15 projetos de lei pendentes desde 1997 que tornam a homofobia ou a transfobia um crime – e às crescentes taxas de crimes contra indivíduos LGBTQ. Estudos brasileiros mostram que 73% dos estudantes LGBTQ foram maltratados verbalmente por causa da orientação sexual; 68% dos funcionários testemunharam alguma forma de homofobia no local de trabalho; e mais de 50% dos moradores de São Paulo testemunharam um ato de discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero em espaços públicos. O Brasil também lidera o índice mundial de homicídios de transgêneros, segundo a Transgender Europe.

Um caminho diferente para os direitos LGBTQ nos Estados Unidos

Os tribunais dos EUA também tendem a agir mais rapidamente do que o Poder Legislativo quando se trata de reconhecer os direitos dos grupos minoritários. O princípio da separação de poderes impede os tribunais, segundo doutrinadores americanos, de preencher “lacunas” legislativas, pelo menos na teoria.

Por exemplo, o Título VII do Civil Rights Act de 1964 proíbe a discriminação no emprego com base em raça, cor, religião, sexo ou origem nacional. No último meio século, porém, os tribunais passaram a interpretar mais amplamente a proteção do Título VII com base no sexo, de modo a incluir a proteção baseada na identidade transgênero e na orientação sexual. No precedente paradigmático da Suprema Corte dos EUA (SCOTUS), Price Waterhouse x Hopkins, o Tribunal esclareceu que discriminar um funcionário por não atender aos estereótipos de gênero é uma discriminação com base no sexo sob o Título VII do Civil Rights Act. A maioria dos tribunais se baseou nas razões de Price Waterhouse para sustentar que essa discriminação baseada na orientação sexual ou na identidade transgênero também se enquadra no escopo da proteção do Título VII.

A SCOTUS aceitou recentemente, ainda, analisar três casos no próximo termo judicial que apresentam questionamentos precisos sobre se as proteções do Título VII incluem proteção com base na orientação sexual e na identidade de gênero.

Interpretação e abordagem da inação legislativa

Nos Estados Unidos, os tribunais são relutantes em fazer inferências concretas da inação legislativa. O fracasso de um órgão legislativo em aprovar uma lei específica pode apoiar inúmeras interpretações conflitantes. Por um lado, isso poderia significar que o Congresso pressupõe que a lei existente já engloba as mudanças propostas, portanto a promulgação de uma nova lei seria desnecessária e redundante. Por outro lado, um tribunal poderia interpretar a inação legislativa como um desejo do Congresso de afirmar que as mudanças não deveriam ser implementadas. Essas duas interpretações da inação do Congresso são mutuamente excludentes; ambas são razoáveis, mas não podem ser ambas verdadeiras.

Os tribunais no Brasil não são tão limitados e têm uma ferramenta adicional à sua disposição; o reconhecimento de uma omissão legislativa. Algumas democracias constitucionais (incluindo o Brasil) reconhecem o princípio de que o fracasso do legislador constitui uma “omissão legislativa” se estiver ciente de que algo antidemocrático está acontecendo (como a violação dos direitos civis ou humanos de um grupo) e não tomar medidas para evitá-lo. Em outras palavras, existem alguns direitos que ainda devem ser protegidos, mesmo na ausência de legislação que os reconheça expressamente.

Podemos perceber a partir disso que o Legislativo do Brasil, vis-à-vis o Direito americano, tem um dever especial perante a população, e, portanto, seu fracasso em agir para evitar danos constitui uma violação de seus deveres.

Um futuro incerto de direitos estabelecidos judicialmente

Ainda não se sabe se os tribunais dos Estados Unidos e do Brasil continuarão a intervir como protetores dos direitos LGBTQ na ausência de ação legislativa. A Suprema Corte dos EUA, agora com uma inclinação conservadora, pode desfazer o progresso de várias décadas dos tribunais inferiores e sustentar que a linguagem “por causa do sexo” do Título VII não protege os indivíduos da discriminação com base na orientação sexual ou na identidade de gênero.

Por outro lado, muitos no Brasil reputariam o STF mais liberal do que a sociedade, e até mesmo um presidente conservador – que considerou completamente errada a decisão do STF de criminalizar a homofobia – apoiado por um congresso conservador não é um obstáculo intransponível para avanços. É possível, assim, que o STF continue desempenhando um papel significativo como instituição contra-majoritária nos próximos anos.


Antonio Guimarães Sepúlveda
Doutor em Direito (UERJ)

David Kemp
Editor do Justia e Professor de Redação Jurídica na UC Berkeley School of Law (Boalt Hall)

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)

Publicado originalmente no blog Justia Verdict.

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