Por Paul R. Verkuil
Embed from Getty Images1984 foi um ano dramático para a literatura e para o Direito. O romance clássico de George Orwell atingiu a maioridade, com seus quatro Ministérios da Paz, do Amor, da Abundância e da Verdade, que brilhantemente descreveram suas antíteses. Menos observado naquele ano — exceto por advogados administrativistas — foi a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) em Chevron v. Natural Resources Defense Council, o caso que recalibrou a revisão judicial das decisões de agências. Também foi decidido no mesmo ano Southland Corp. v. Keating, um precedente que paralisou a eficácia (preemption) de leis estaduais de arbitragem que até mesmo advogados administrativistas podem haver ignorado.
É tentador unir os três eventos — já que os ministérios de Orwell são, afinal, agências. Mas vou focar nas duas decisões da Suprema Corte. Juntas, elas contam uma história incompreendida de contradição doutrinária — uma espécie de duplipensamento Orwelliano.
A questão atual é: como a arbitragem, um regime de decisão alternativo sobre o qual a SCOTUS pouco conhece, tornou-se tão agasalhada a ponto de a maioria dos Justices se mostrarem dispostos a adotá-la quase sem questionamentos, ao mesmo tempo em que o processo administrativo, um regime bem definido sobre o qual a Corte sabe muito, tem sido questionado a ponto de ser objeto de descrédito?
Chevron é um conto bem conhecido, o caso de Direito Administrativo mais citado nos Estados Unidos da América (EUA) e objeto de discussões dispendiosas infindáveis. Pretendo deixar isso de lado e focar no propósito geral de Chevron: dar às agências um poder judicialmente delegado para decidir questões de política administrativa, tanto no primeiro quanto no último momento – o famoso processo de duas etapas.
Chevron defendeu o Estado Administrativo ao reconhecer que o poder das agências decorre do mais democrático Poder Executivo, e são sujeitas às garantias processuais previstas na Lei de Procedimento Administrativo (Administrative Procedure Act). Essa premissa, aceita por Justices liberais e conservadores da SCOTUS durante a presidência conservadora de Reagan, está sendo progressivamente desconstruída. Os Justices conservadores agora identificam defeitos no processo administrativo não apontados desde o início do New Deal. Por exemplo, na sua divergência no precedente City of Arlington v. Federal Communications Commission, o Chief Justice John Roberts descreveu as agências que se situam fora dos “departamentos tradicionais do Executivo” como o “quarto Poder independente do governo” (headless fourth branch of government).
De fato, acadêmicos como Philip Hamburger agora defendem abertamente que o Estado Administrativo é inteiramente ilegítimo, um argumento elaborado por Roscoe Pound que não se ouvia desde a década de 1930. Esta virada reacionária realiza um balançar de olhos sobre o papel de Chevron de limitar a jurisdição da SCOTUS sobre o Estado Administrativo.
Demais disso, a influência da Chevron diminui paralelamente à de outros precedentes relacionados, como Auer v. Robbins, que orienta que juízes e legisladores sejam deferentes aos regulamentos infralegais das agências. Ao mesmo tempo, a SCOTUS desafia a própria APA de maneiras outras, ao decidir e.g. de que modo os julgadores administrativos (ALJ) devem ser nomeados e controlados.
Diferentemente de Chevron, Southland é um precedente de Direito Administrativo mais discreto, decidido no mesmo ano. E até hoje se mantém intacto. No julgamento de Southland, a opinião majoritária do Chief Justice Warren E. Burger transformou a Lei Federal de Arbitragem (Federal Arbitration Act – FAA) num decreto regulamentar, utilizado para definir a política de arbitragem nacional e afastar a aplicação de Leis dos Estados relativas à arbitragem. A dissidência inflamada da Justice Sandra Day O’Connor, acompanhada pelo Justice William Rehnquist, argumentou que a FAA seria apenas uma lei procedimental, e não possuiria o propósito de impedir a aplicação de leis estaduais. “Embora a arbitragem seja uma alternativa digna ao litígio”, afirmou a Justice, “o exercício atual do revisionismo judicial vai longe demais”. Críticos chamaram a decisão majoritária de “extraordinariamente inadequada”.
O impacto do caso Southland na jurisdição da Corte é significativo. Ao paralisar a eficácia de leis Estaduais, ele efetivamente permite que a arbitragem obrigatória impeça a utilização de remédios processuais previstos nas leis locais, como ações coletivas (class actions) trabalhistas e consumeristas. Mas mesmo que a resistência a Southland tenha começado entre juízes conservadores, os atuais Justices conservadores da Corte, ao que parece, sofreram uma conversão doutrinária. Há, atualmente, tanto da doutrina Southland quanto da doutrina Chevron, apesar de a discussão sobre isso não ser muito profunda. Vamos chamar este artigo de uma discussãozinha.
As doutrinas Southland e Chevron possuem uma coisa em comum: o desejo de reduzir a carga de trabalho do Poder Judiciário resolvendo casos em palcos alternativos. Ao endossar a arbitragem como um regime alternativo ao litígio, Southland não só legitimou o processo arbitral, mas também fez da arbitragem uma alternativa ao processo administrativo.
Este aspecto da FAA é bem menos compreendido. Imre Szalai, que fez uma pesquisa profunda sobre a história legislativa da FAA, chama a lei de um passo evolutivo na ascensão do Estado Administrativo por meio da qual se delega a experts a autoridade para resolver problemas complexos. Ao equiparar a arbitragem à administração pública, a visão de Szalai nos remete ao período do New Deal, quando mudanças do processo administrativo foram fortemente contestadas. Mas isso foi antes da APA, que, segundo afirmou o Justice Robert H. Jackson no precedente Wong Yang Sung v. McGrath, inaugurou um modelo sobre o qual as forças sociais e políticas opostas se apoiaram.
O mistério é o seguinte: por que a SCOTUS aparentemente optou por defender procedimentalmente a FAA ao, simultaneamente, minar a APA? A FAA é uma lei básica. Seu artigo principal simplesmente declara que as cláusulas arbitrais (arbitration agreements) são válidas, irrevogáveis e exequíveis em geral. A FAA não diz às partes como realizar a arbitragem — apenas diz para fazê-la. Não se preocupa com a qualidade da arbitragem nem afasta os regimes alternativos previstos nas leis estaduais que regulam acordos de arbitragem.
A FAA não tenta imitar o regime processual cuidadoso criado pela APA. Isso faz sentido, uma vez que a arbitragem, ao contrário do processo administrativo regulado pela APA, pretende ser consensual, e qualquer procedimento ajustado por partes iguais (equal parties) será suficiente: seja ele um cara ou coroa ou uma estrutura mais formal criada por grupos privados como a Associação Americana de Arbitragem. Com a arbitragem, as partes podem escolher seus “decisores”, o que é algo que o processo administrativo – ou o Judiciário, nessa matéria – não permite.
Pode-se notar por que o Congresso queria que a FAA fosse aceita por um Judiciário então relutante em 1925. Esse período é anterior ao Regimento Federal de Processo Civil (Federal Rules of Civil Procedure), e os Tribunais estavam sobrecarregados com uma crescente carga de trabalho provocada pelos processos relacionados à Lei Seca americana (Prohibition cases). Mas a FAA não era uma lei sofisticada. Ela nunca antecipou o problema que surge quando as partes não são iguais e a arbitragem é imposta à parte mais vulnerável por meio de cláusulas arbitrais obrigatórias.
Em situações trabalhistas e consumeristas, Estados como a Califórnia têm tentado equilibrar a balança por meio de instrumentos de opt-outs e ações coletivas (class actions) amparadas na lesão presumida (inconscionabilidade). Mas, a partir do momento que SCOTUS agasalhou a arbitragem em Southland, os Tribunais inferiores rejeitaram tais argumentos. O que resta é um regime de decisão alternativo endossado pela SCOTUS que, procedimentalmente, não chega nem perto do que o processo administrativo oferece em termos de justiça.
Defender a arbitragem é tentador para Tribunais sobrecarregados, por razão do seu impacto na redução da carga de trabalho do Judiciário. Diferentemente do que ocorre nos processos administrativos, os acervos de processos judiciais são imediatamente reduzidos assim que processos potenciais são remetidos a árbitros ou, como normalmente acontece, simplesmente desaparecem. Todavia, esse desejo egoístico por parte dos Tribunais Federais de reduzir seus acervos processuais não se justifica mais. Como Judith Resnick demostrou, os temores dos Tribunais Federais de altas distribuições processuais na década de 1990 foram exagerados – as estimativas foram superdimensionadas em dois-terços.
Hoje, não há crise de acervo. Além disso, mesmo argumentos válidos relacionados à carga de trabalho não devem ser aplicados quando os Estados veem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário. A paralisação da eficácia de leis estaduais pela FAA impede ações judiciais perante Tribunais Estaduais, baseadas nas Leis estaduais que ponderam cuidadosamente as bases consensuais subjacentes às cláusulas arbitrais. A decisão da Suprema Corte de deixar a FAA “ocupar o campo” e paralisar a eficácia de leis estaduais tem consequências drásticas para os Estados que querem monitorar a equidade e a eficácia das cláusulas arbitrais e dos árbitros. A Corte tem efetivamente lavado suas mãos no que se refere a preocupações relativas a garantias processuais e substantivas decorrentes deste regime de decisão alternativa.
Ao mesmo tempo, a Corte permanece desfazendo o regime processual meticuloso que a APA instituiu nos anos seguintes ao New Deal. Em uma série de precedentes derivados de Lucia v. SEC, a preocupação do Tribunal relacionada aos poderes dos agentes do Poder Executivo pôs em risco o desenho previsto na APA para a independência dos julgadores administrativos (ALJ). Depois que Lucia x SEC definiu que os ALJ seriam oficiais inferiores, o Presidente retirou o poder de nomeá-los do Escritório de Gestão de Pessoas e o delegou às agências, diretamente. Essa mudança possui vantagens de eficiência, mas pode muito bem ter consequências negativas para a independência dos julgadores (ALJ).
O interesse judicial na microgestão da estrutura administrativa prossegue em Seila Law v. CFPB, pendente de julgamento, no qual se questiona a constitucionalidade da estrutura de agências independentes que possuem um único Diretor. O foco intenso do Tribunal na estrutura administrativa está totalmente em desacordo com a sua abordagem indiferente aos efeitos traumáticos da FAA no campo da arbitragem.
Nenhum caso melhor ilustra as abordagens contrastantes da Corte aos regimes arbitral e administrativo do que Epic Systems Corp. v. Lewis. Em jogo estava o direito de empregados ajuizarem uma ação coletiva por perdas de remuneração relativas a horas-extras sob a Lei de Normas Trabalhistas (Fair Labor Standards Act). Os valores eram tão pequenos que as ações individuais na arbitragem — exigida por cláusula arbitral do empregador — nunca teriam se mostrado um recurso prático. Os autores tentaram utilizar a “cláusula de atividades concertadas”, prevista na Lei Nacional de Relações de Trabalho (National Labor Relations Act – NLRA), para afastar as restrições às ações coletivas previstas no acordo de arbitragem. A Corte, dividida em 5-4 com retórica acalorada de ambos os lados, considerou que a FAA protege os empregadores do regime administrativo criado pela NLRA.
A opinião majoritária do Justice Neil Gorsuch recusou-se a permitir que o elaborado sistema administrativo estabelecido pelas leis trabalhistas pudesse limitar a aplicabilidade da FAA. Embora o Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (National Labor Relations Board – NLRB) haja decidido que a NLRA não apresentava nenhuma antinomia fundamental com a FAA, o Justice Gorsuch rejeitou a interpretação do NLRB. Ele não admitiu a aplicação da deferência Chevron, pois o Conselho não possuiria nenhuma expertise relativa à FAA, e rejeitou a conclusão da NLRB ao destacar que o NLRB e o Procurador-Geral apresentaram pareceres divergentes sobre a questão. Livre de qualquer deferência à interpretação da agência, a decisão majoritária atribuiu à FAA status semelhante à NLRA e usou a FAA para afastar a sedimentada estrutura administrativa estabelecida em torno das relações de trabalho.
A Justice Ruth Bader Ginsburg, divergindo, atacou a opinião majoritária “flagrantemente errada” em várias frentes. Sua opinião, acompanhada pelos Justices Stephen Breyer, Elena Kagan e Sonia Sotomayor, rememora os 75 anos de história da NLRA e a história do movimento trabalhista. Ela destaca o avanço da jurisprudência do Tribunal, das decisões que legitimavam contratos de cães amarelos (yellow dog contracts) – que impediam a sindicalização de obreiros – à sua disposição, após o despertar da Corte no New Deal, de defender a legislação que protege os direitos dos trabalhadores. Ela acusou a maioria de retornar à era Lochner negando aos autores um remédio processual coletivo previsto na NLRA.
O Justice Gorsuch ignorou a acusação, apontando que a interpretação da FAA não decorre de uma interpretação constitucional da Cláusula do Devido Processo. Ele está certo, teoricamente, é claro, já que o Congresso poderia alterar a FAA para corrigir o problema. No atual ambiente político, no entanto, qualquer projeto de lei sobre a questão que emane da Câmara dos Deputados dos EUA sucumbiria rapidamente no Senado. A realidade é que, no mundo atual do impasse legislativo, a diferença entre a interpretação legal e a constitucional perdeu grande parte do seu efeito prático.
Epic Systems defende que os propósitos da FAA e das cláusulas arbitrais se sobrepõem à estrutura administrativa que sustenta a legislação trabalhista federal. Ao ignorar a estrutura estabelecida, o Tribunal interpretou a FAA de modo a inadmitir a utilização de remédios substantivos tanto no âmbito dos Tribunais estaduais quanto no âmbito administrativo. Como resultado, não há nenhuma instância disponível para discutir a questão. Esse resultado surge nada obstante a NLRB possua o poder de apreciar demandas coletivas e, assim, possa satisfazer direitos básicos da legislação do Trabalho, mesmo deixando de pé a paralisação das leis Estaduais.
Por que o Tribunal prefere a arbitragem às soluções administrativas? É difícil não enxergar os Quatro Cavaleiros do Conservadorismo cavalgando novamente, acompanhados pelo Chief Justice, como o Cavaleiro Sem Cabeça do Quarto Poder, para formar a fatídica maioria. A antipatia à Administração precisa ser uma resposta sobre o porquê de a arbitragem haver superado o Direito Administrativo — se não o próprio rule of law.
Ainda assim, é difícil ver como tudo isso aconteceu. Até Southland, a paralisação nunca foi uma causa conservadora. Entretanto, uma vez dado o passo em Southland, parece não haver volta.
O status indefinido de Chevron demonstra que as premissas básicas sobre a alocação dos poderes administrativo e judicial estão sendo repensadas. A FAA é realmente um cúmplice acidental na reavaliação da APA e do Estado Administrativo que ajudou a legitimar? Ou é parte do viés de longa data da SCOTUS em favor dos grandes interesses empresariais e talvez o projeto maior de reverter o New Deal?
O recente livro de Adam Cohen, Supreme Inequality, traça um curso detalhado da Corte nesse sentido que é profundamente preocupante, especialmente para aqueles que acreditam em princípios neutros em detrimento de politização da justiça. A Justiça Igualitária Sob Lei ainda é um princípio tão neutro?

Paul R. Verkuil
Presidente Emérito do College of William and Mary
NT Preemption significa, segundo a nona Edição do Black’s Law Dictionary o principle (derived from Supremacy Clause) that a federal law can supersede or supplant any inconsistente state law or regulation. Escolhemos a utilização da palavra paralisação por possuir maior abrangência, já que suspensão da eficácia possuiria alcance mais restrito.
NT Refere-se o autor à ideia de George Orwell de duplipensamento apresentada no livro 1984, e que se refere ao ato de aceitar duas opiniões divergentes simultaneamente, sobretudo por razão de doutrinação política.
NT Descreve o Black’s Law Dictionary que unconscionability is normally assessed by an objective standard: (1) one party’s lack of meaningful choice, and (2) contractual terms that unreasonably favor the other party.
NT Isso ao afastar deliberadamente a aplicação de uma disposição legal. É afirmado que na Era Locher (1890 a 1937) a SCOTUS, using a broad interpretation of due process that protected economic rights, tended to strike down economic regulations of working conditions, wages or hours in favor of laissez-faire economic policy.
Tradução do artigo intitulado The Supreme Court’s Doublethink on Arbitration and Administration, e publicado originalmente na The Regulatory Review, em 27 de abril de 2020. Tradução e divulgação autorizadas pelo autor, Paul R. Verkuil, e pelo Editor da revista, Cary Coglianese. Tradução de Igor De Lazari; revisão de Antonio Sepulveda.
Nossos agradecimentos a Paul Verkuil, Cary Coglianese e à RegRev, pelo apoio e gentileza. The Interfases Blog Editors wish to thank Paul Verkuil, Cary Coglianese and The RegRev for their support and kindness.