Por Antonio Sepulveda & Igor De Lazari
Embed from Getty ImagesFoi recentemente publicada a Lei nº 13.988/20, resultante de aprovação de Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória (MP) nº 899/2019. Ignorando as recomendações do Ministério da Justiça e da Procuradoria-Geral da República (PGR), o Presidente da República sancionou dispositivo legal (art. 28 da Lei) que impede a utilização do voto de qualidade nos julgamentos, pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), de processos administrativos de determinação e exigência do crédito tributário.
Dispõe a lei – alterando dispositivo da Lei nº 10.522/02 – que nestas situações, em casos de empate, a questão será resolvida favoravelmente ao contribuinte. Embora o voto haja sido objeto recorrente de questionamentos, a sua extinção surpreendeu a área jurídica, pois não havia sido prevista na redação originária da MP nº 899/2019. Tratou-se, assim, de indesejável contrabando legislativo, já que a emenda parlamentar que inseriu a matéria não diz respeito ao mérito da Medida Provisória, que dispõe sobre os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária.
Em relação a isso, não é demais lembrar que o Supremo Tribunal Federal já afirmou (e.g. ADI 5127, ADI 5012) que a prática é inconstitucional, por afronta ao princípio democrático, ao postulado da separação entre os Poderes e à garantia do devido processo legislativo, não sanando o vício a sanção ulterior do projeto pelo Presidente da República.
Esse é, a propósito, um dos argumentos utilizados na recente ADI ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, na qual se requer, precisamente, a declaração da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 13.988/20.
No CARF, os julgamentos são realizados por colegiados paritários, pois representantes da Fazenda Nacional – Auditores Fiscais da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) – e dos contribuintes participam conjuntamente das deliberações administrativas. E, nas hipóteses de empate, o voto de qualidade incumbia, antes da mudança legislativa, aos Presidentes das Turmas ou das Câmaras do órgão, que são indicados pela Fazenda Nacional.
Para defensores da mudança, o voto de qualidade desequilibrava a relação Estado-contribuinte e privilegiava, sempre, os interesses do Fisco Federal, pois, alegadamente, os órgãos do CARF seriam presididos por legítimos czares, defensores dos interesses da Fazenda.
Entende-se, porém, que o voto de qualidade pode ser defendido a partir de razões de primeira e de segunda ordem.
Razões de Primeira Ordem
Em artigo recente, Carlos Augusto Neto e Diego Ribeiro apontaram que o percentual de acórdãos proferidos de forma unânime [no CARF] vêm aumentando paulatinamente desde 2017, período em que as decisões unânimes foram 71,1% do total, subindo para 76,6%, 81,5% e 89,3% em 2018, 2019 e 2020 (até o mês de fevereiro), respectivamente, e, em sentido diametralmente oposto, os votos de qualidade têm sucessivamente diminuído, representando 7,2% das decisões em 2017, reduzindo sua incidência ano a ano para 6,8%, 5,3% e, até o momento, no ano 2020, segundo dados do próprio CARF, 2,8%:

Este argumento é, inter alia, o mesmo utilizado pela PGR para defender a manutenção do voto de qualidade no âmbito da ADI 5731, na qual a Ordem dos Advogados do Brasil requeria, já no ano de 2017, a declaração de inconstitucionalidade da norma que o previa (recentemente paralisada pelo art. 28 da Lei nº 13.988/20). No parecer ministerial, a PGR argumentou que o voto de qualidade junto ao CARF não se presta para decidir, sempre, em favor do Fisco, e constitui forma plenamente constitucional – é dizer, isonômica e proporcional – de resolver casos de empate.
Portanto, o voto de qualidade afetava ou impactava um número mínimo de julgamentos no âmbito do Conselho. Mencione-se ainda que o CARF, na posição de última instância do contencioso tributário, aprecia recursos que desafiam deliberações tomadas pelas Delegacias de Julgamento que funcionam como primeiro filtro processual. Portanto, é razoável presumir que as probabilidades de revisão das decisões anteriores proferidas por órgãos da RFB (leia-se, Delegacias de Julgamento) são substancialmente menores.
Embora algumas críticas se baseiem na quantidade de crédito tributário resolvido pelo voto de qualidade, a análise isolada de desempenho do CARF nesse aspecto não diz tudo. Além da avaliação pontual, deve-se incluir uma apreciação orgânica e holística, que inclua as demais instâncias de decisão do contencioso fiscal, de que o CARF faz parte.
Razões de Segunda Ordem
Nossa Constituição Republicana estabelece que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.
Disso decorre que o poder interpretativo do Poder Executivo é independente e igual, em status jurídico-constitucional, ao poder interpretativo dos demais Poderes constituídos (cf. PAULSEN, Michael. “The Most Dangerous Branch: Executive Power to Say What the Law is”. Georgetown Law Journal, 83:2, 1994). Por ser essencialmente ativo executor da lei e desempenhar papel fundamental na aplicação da legislação, o Executivo é tido por intérprete primário da lei. No Estado Democrático de Direito brasileiro, diversas são as instituições localizadas no âmbito do Poder Executivo que, por autoridade ou necessidade, atuam nesta qualidade.
De acordo com a ordem constitucional brasileira, é prerrogativa do Poder Executivo estruturar o processo deliberativo dos órgãos administrativos de maneira a moldar a discricionariedade interpretativa de milhares de agentes públicos. Nesse contexto, o voto de qualidade, adotado amplamente como mecanismo de desempate por inúmeros órgãos de diferentes instâncias e Poderes, nacionais e internacionais, representa (ou representava) uma das formas de expressão da palavra do Poder Executivo e privilegiava, apenas, uma solução técnico-jurídica das questões submetidas a julgamento.
Sua legitimidade decorria do próprio desenho paritário adotado no CARF (que qualifica epistemicamente o órgão) e das prerrogativas institucionais de que dispõe o Poder Executivo para ordenar e regular suas decisões: a qualidade era, afinal, uma opção político-legislativa de caráter procedimental que amparava a interpretação do Poder Executivo em processos administrativos de determinação e exigência do crédito tributário.
Finalmente, é de ressaltar que a instituição do voto de qualidade ocorreu mediante lei, e, portanto, dispunha de adequadas credenciais democráticas, sem mencionar que o contribuinte poderá recorrer sempre ao Judiciário, prerrogativa de que não dispõe a Fazenda Pública (no que se refere às decisões definitivas do CARF).
Ainda que a alteração legislativa tenha ocorrido de maneira açodada no Congresso Nacional e o Presidente não haja se oposto à medida mediante veto, o voto de minerva é legítimo e pode ser suportado a partir de diferentes argumentos; e já que o Direito é um romance em cadeia, incumbirá agora ao Supremo Tribunal Federal, nas ADIs apresentadas, redigir o próximo capítulo da história e definir os destinos do voto de qualidade.

Antonio Guimarães Sepúlveda
Doutor em Direito (UERJ)

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)
Imagem de apresentação: CARF
Um comentário sobre “Voto de qualidade: uma das formas de expressão da palavra do Poder Executivo”
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