Por Sergio Dias & Igor De Lazari
Embed from Getty ImagesInstituir sistemas universais de saúde é um objetivo de muitos países, mas requer amplas reformas e depende de aporte público significativo. Parte dessas dificuldades relativas à implementação de sistemas públicos universais de saúde nos EUA e no Canadá são discutidos nos pertinentes artigos de Carmel Shachar e Travis Carpenter publicados no último ano no blog The Regulatory Review.
Percebe-se que os desafios descritos nestes artigos ocupam parte dos debates jurídicos e políticos no Brasil. Diferentemente de Canadá e Estados Unidos, porém, a Constituição Brasileira afirma literalmente que a saúde é direito de todos e um dever do Estado e deve ser garantida mediante políticas sociais e econômicas (artigo 196). Este artigo é regulamentado pela Lei Federal 8.080, de 1990, que instituiu Sistema Único de Saúde (Sistema Único de Saúde – SUS).
Inclui-se, no âmbito do SUS, a assistência terapêutica integral (art. 6º da Lei), que abrange, para propósitos da lei, a dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde (art. 19-M). Essas disposições legais — sustentadas pela dominante orientação jurisprudencial no sentido de que a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, que deve ser garantido mediante a implementação de políticas públicas – levou ao ajuizamento de milhares de ações no país nas quais os autores requerem a dispensação de medicamentos, aprovados ou não pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apurou que as despesas anuais do SUS – nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal – para aquisição de medicamentos, no período de 2010 a 2016, somaram R$ 14 bilhões a R$ 20 bilhões, mas, no mesmo período, as despesas anuais médicas para a aquisição de medicamentos por determinação judicial alcançaram R$ 7 bilhões.
Pretendendo diminuir as despesas decorrentes de ações judiciais, o Brasil aprovou a Lei nº 12.401/11, que definiu procedimentos para incorporação de novos medicamentos no âmbito do SUS. Essa lei instituiu ainda a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) para assessorar o Ministério da Saúde nos processos de incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos (art. 19-Q, da Lei), e proibiu, no âmbito do SUS, a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa (art. 19-T).
Nos processos de incorporação de novas drogas o CONITEC adota um procedimento rigoroso, que inclui análises de estudos técnicos (incluindo uma descrição científica da nova droga, uma análise econômica e uma análise de impacto financeiro), solicitação de pesquisas adicionais e audiências públicas. Essa análise econômica pode ser baseada numa análise de custo-efetividade (mensurando as repercussões sobre alguma unidade de benefício clínico e.g. anos de sobrevida obtidos), numa análise de custo-utilidade (QALY – quality-adjusted life years, DALY – disability-adjusted life year) ou numa análise de custo-benefício (recursos e benefícios à saúde mensurados a partir de unidades monetárias).
Embora o Ministério da Saúde reconheça que nenhuma dessas análises seja oficialmente adotada, recomenda-se que as análises econômicas apresentadas incluam nas curvas de aceitabilidade faixas amplas de análise, mas incluindo o valor de uma a três vezes o produto interno bruto per capita do país por QALY (isto, de aproximadamente R$ 50.000,00 – R$ 100.000,00 por ano de sobrevida ajustada pela qualidade). Ressalte-se que, quanto menor a relação R$/QALY, maior é a utilidade do recurso médico utilizado.
Exemplificativamente, o CONITEC aprovou no mês de agosto do ano passado um pedido da Novartis para incorporar ao SUS os medicamentos Sacubitril/Valsartana (Entresto, nos Estados Unidos) adotando parâmetros QALY após receber 2.187 manifestações no âmbito de Consulta Pública. Na sua decisão, o CONITEC afirmou inter alia que ambas as drogas haviam sido aprovadas por outras agências de avaliação de tecnologias em saúde (ATS) – NICE (The National Institute for Health and Care Excellence – Grã-Bretanha), CADTH (Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health – Canada), PBAC (Pharmaceutical Benefits Advisory Committee – Australia), HAS (Haute Autorité de Santé – França) e SMS (Scottish Medicine Consortium – Escócia) – e que seu QALY seria de R$ 24.649,00 (abaixo do limiar mínimo sugerido pelo Ministério da Saúde). Despeito de a incorporação haver ocorrido apenas no ano passado, é possível identificar inúmeras decisões judicias, desde 2012, determinando a dispensação de Valsartana pela União e pelos Estados.
Portanto, as modificações introduzidas pela Lei nº 12.401/11 não resolveram o problema: juízes e Tribunais raramente utilizam análise de custo-benefício nas suas decisões e normalmente reputam que o direito à saúde prevalece sobre seu ônus, independentemente de quaisquer pronunciamentos do CONITEC.
Houve, reconhece-se, duas decisões judiciais relevantes restringindo a distribuição de drogas no âmbito do SUS. Primeiro, o Superior Tribunal de Justiça afirmou, no ano de 2018 (EDcl no REsp 1.657.156/RJ), que a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, adotando orientação mais restritiva, decidiu no RE 657718 AgR (Tema 500 da Repercussão Geral) que i) o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais; ii) a ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial; iii) é possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (1) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (2) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (3) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil; e iv) as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.
Mesmo após mudanças legislativas e judiciais, um litigante ainda possuirá direito de obter um medicamento não incorporado, de maneira gratuita, se provar que não há drogas alternativas satisfatórias e que não dispõe de recursos necessários para adquiri-las. Portanto, as despesas de aquisição não são um óbice determinante para a jurisprudência, ainda que se refira a um medicamento não aprovado pela ANVISA e não incorporado pelo SUS. Essa realidade brasileira demonstra a necessidade de definir limites prévios e bem definidos para programas de saúde, mesmo que isso abranja incômodas discussões relativas à precificação da vida.

Igor De Lazari
Mestre em Direito (FND/UFRJ)

Sergio Dias
Doutorando em Direito (UFRJ) e Juiz Federal da Justiça Federal da 2ª Região
Publicado originalmente pelos autores no blog The Regulatory Review; artigo revisado.
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